SEMÂNTICA DAS AVES: O TEMPO NA MODERNIDADE | por Paulo Rodrigues

nathan sousa - SEMÂNTICA DAS AVES: O TEMPO NA MODERNIDADE | por Paulo Rodrigues

 

 

LÍQUIDA

“vida: estrada férrea
entre a pétala e o curtume;
rasura na palma do improvável”
(Nathan Sousa)

 

 

Li com muita atenção o livro Semântica das Aves do Nathan Sousa. Ganhador do Prêmio Internacional Vicente de Carvalho (2017) da União Brasileira de Escritores – UBE/RJ e lançado pela Editora Penalux, no mesmo ano. Tem cento e seis páginas. Muito bem estruturado em quatro seções: stonehenge, labirinto de brumas, o mercado de peles e plumagem.

O tempo, a contemplação dos dias, a transcendência, o improvável está na mesa do escritório do poeta. Ele observa as horas dos homens. Como gastam a vida: com álcool, acumulando o vil metal, prostitutas, escrevendo as angústias. No poema BASTIDORES, já entendemos o tom interno e reflexivo. O mundo é visto com perplexidade, por isso: “é preciso plantar/ um girassol sobre a tevê”.

Confessou para a revista Geleia Total, em entrevista: “escrever representa, para mim, um mergulho na parte obscura de meu eu, e isso me aproxima do mundo.” Nathan invade a anima sem pudor.
Atravessa a si mesmo ao lavrar o sonho, reconhece os impulsos da ave, no silêncio das manhãs.

Vejamos dentro da obra, as marcas de temporalidade contemporânea na cena de NOITE LÍQUIDA:

 

vejo-te como uma vasta galeria.
e insigne é esta mão que escondo
em câmara ardente; afeita ao que é
espectro ou dígito de óbitos.

é este molusco dramático que ampara
o que o tempo decompõe feito o sal do solo.

e perfeita é a sombra de tua obra: distraída
e ávida como um café noturno.

 

O polonês Zygmunt Bauman constata: “vivemos tempos líquidos. Nada é para durar”. Nada mais se solidifica entre nós, em nós. O poeta elabora uma imagem que casa bem com a teoria do sociólogo: “é este molusco dramático que ampara/ o que o tempo decompõe feito o sal do solo”.

A rapidez do gás nas palavras. A carne não precisa de economia. As mudanças contamináveis, na existência do moinho.

A célula se diluindo numa velocidade arrasadora. Há uma preocupação leve do sujeito lírico, na busca por fixar os olhos na construção literária, no entanto, isto não o tira desta devastação de sentidos da Modernidade Líquida: “e perfeita é a sombra de tua obra: distraída/ e ávida como um café noturno”.

Vejamos o que encontramos mais à frente, no poema UTENSÍLIO:

 

seja forte. o mundo vai
te dar em dobro ou em triplo
o suor que você derramou
em todos esses anos de luta
para ter o que nas mãos também
é líquido.

 

Bauman quase que profetiza: “estamos constantemente correndo atrás. O que ninguém sabe é correndo atrás de quê”. A pressa foi implantada no nosso DNA. O sentido do mundo moderno é a velocidade, o consumo, a compra.

Nathan Sousa não é um homem oceânico. Não aceita o vazio deste tempo de agora. Pisa firme. Encontra a questão filosófica na sentença afirmativa: “para ter o que nas mãos também/ é líquido”.

É o devir grego, morando na enunciação poética deste autor que é uma das grandes referencias da literatura piauiense.

As questões universais são colecionadas pela poética de Nathan. Muitas vezes irônico e debochado enfrenta a realidade como podemos perceber na continuidade do texto:

 

extraia da raiz dos nervos as
unhas submersas no perdido,
e talha tua própria fibra de
dentro para fora, cerzida na
vertigem desta dúvida que
agora te devoras pelas vísceras.

força, vamos! levante a cabeça
e olhe para o sol; não é lá
que reside este deus que
perfura a coerência de tua
fábula de consciência e medo.

este deus assanha seu arrojo
entre o ventre e a língua,
entre a saliva e a sevícia.

 

“O medo é uma das marcas do nosso tempo”, disse Bauman.
Tudo é feito em função dele, ou não? Construímos cercas elétricas; destruímos a intimidade para proteger “o ansioso”. Absurdo! Nossas fábulas são retalhos de medo: “que reside este deus que/ perfura a coerência de tua/ fábula de consciência e medo”.

É importante localizarmos as características sociológicas na coletânea, porque ligam a luz discursiva do poeta. Ele está conectado com a estrutura social dos nossos dias. Vê e denuncia, com uma linguagem densa: “acredite, nada disso foi criado/ em sete dias./ apenas aquele aperto no peito/ de quem viu a primeira lua”.

Nathan, dessa maneira, conduz o leitor ao campo temporal instável da Modernidade Líquida. Os textos superam a expectativa hermenêutica de todos nós, pois são feitos com a força do sol de Platão, na alegoria da caverna.

 

 

TEXTO: PAULO RODRIGUES – Professor de literatura, poeta, escritor e autor de O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux, 2018). Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma Interpretação para São Gregório. É membro da Academia  Poética Brasileira.

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This Article Has 1 Comment
  1. Roberto Monteiro Reply

    O mundo é uma aldeia global e parece-me que por aqui, existe uma teia ou uma confraria… sempre quem escreve sobre ou publica textos, tem uma certa ligação… pobres de nós, reles mortais…

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