‘Carta a um imigrante sírio’ – 5 poemas de Ranieri Carli

 

RANIERI - 'Carta a um imigrante sírio' - 5 poemas de Ranieri Carli

Ranieri Carli, 42 anos, professor da Universidade Federal Fluminense e crítico de literatura, autor de A estética de György Lukács e o triunfo do realismo na literatura; é também poeta, autor de Toda Estupidez, de 2019, editado pela Autografia. Reúne novos poemas em Autorretrato de nossa carência, a ser publicado em breve. Pretende com poesia sugerir algumas reflexões sobre os problemas que experimentamos nos dias atuais.
E-mail: raniericarli@gmail.com

 

 

Nunca me toque!

Longe de mim! Nem com luvas de seda
Toque-me, encoste-me; nunca me toque
Com tantas doenças que traz a reboque,
Que em suas veias eu soube que hospeda.

Você transmite malária e sarampo,
Piolhos e, quem sabe, a doença de Chagas.
Porta em seu peito milhares de pragas
Como uns insetos que infestam o campo.

Vários carbúnculos cobrem a pele
Que esconde embaixo de roupa e sapato.
Só de supor o mais simples contato
Faz com que eu trema e meu sangue congele.

Da China, trouxe a novíssima gripe.
Não haverá quem talvez não respire os
Milhões do infausto e mortífero vírus
Que espalha quando aportou no Sergipe.

Até pensei numa hipótese esnobe
De lançar fogo em seu corpo infestado:
Que a carne queime por todos os lados
Dentro do inferno da flama que sobe.

Para limpar-me, porém, o mais sábio
A se fazer é mantê-la distante,
Usando máscara higiênica diante
Da horrível chance de um toque no lábio.

 

 

Congoleses deixam Brasil fugindo da crise e morrem no mar na Colômbia

A viagem que dura meses
De galera desde o Congo.
Um longo percurso, longo
O inferno dos congoleses.

Fogem desse Congo hostil,
Da fome, que os afugenta
Também daqui, da tormenta
Que os acompanha ao Brasil.

Acre, Peru, Panamá…
No rumo que o norte aponte,
Pondo sempre no horizonte
O sonho de um Canadá.

Por sete mil e oitocentos,
São levados por coiotes
Compressos dentro dos botes,
De onde se ouvem seus lamentos.

Na Colômbia, a tevê exibe
Que tomba uma das canoas
Com trinta e duas pessoas
Mortas no mar do Caribe.

Dos corpos, são dezessete
Descobertos: nove adultos
E oito miúdos insepultos,
Todos eles sem colete.

Mas não computaram entre
As crianças mortas, dois fetos
Que viajavam ali, quietos,
Dentro das mães, em seu ventre.

 

 

O burocrata I

Comendo um pão com purê de batata,
Como convém a um veraz burocrata.

Pondo a ração na vasilha da gata,
Como convém a um veraz burocrata.

Vestindo um terno de linho e gravata,
Como convém a um veraz burocrata.

Saudando desde o porteiro ao magnata,
Como convém a um veraz burocrata.

Mostrando as salas à turma novata,
Como convém a um veraz burocrata.

Fixando os muitos registros em ata,
Como convém a um veraz burocrata.

Dispondo ofícios por ordem de data,
Como convém a um veraz burocrata.

Lendo o estatuto que sempre se acata,
Como convém a um veraz burocrata.

Fazendo do hábito a máscara inata,
Como convém a um veraz burocrata.

Sendo um vagão que nos outros engata,
Como convém a um veraz burocrata.

Portando o espírito da álgebra exata,
Como convém a um veraz burocrata.

Abrindo mão de aderir à passeata,
Como convém a um veraz burocrata.

Fingindo ser eleitor democrata,
Como convém a um veraz burocrata.

Fechando os olhos à má negociata,
Como convém a um veraz burocrata.

Servindo dócil a quem o contrata,
Como convém a um veraz burocrata.

Cedendo quando lhe pedem a pata,
Como convém a um veraz burocrata.

Sofrendo o assédio que não se relata,
Como convém a um veraz burocrata.

Temendo a Deus, senhor do ouro e da prata,
Como convém a um veraz burocrata.

Deixando à sombra o seu viés psicopata,
Como convém a um veraz burocrata.

Contendo impulsos de origem primata,
Como convém a um veraz burocrata.

Domando a vida, tão pérfida e ingrata,
Como convém a um veraz burocrata.

Vivendo a inércia, que aos poucos o mata,
Como convém a um veraz burocrata.

 

 

Violeta Parra

Vem-lhe à garganta um amargo de bile
Enquanto o canto do povo do Chile
Está vibrando no lábio que o narra.

Ânsia que não se controla jamais,
Que rompe forte das cordas vocais
Calando até a estridente cigarra.

Grita bem alto que a América escute,
A mesma América em que pisa o mamute
Do usurpador que lhe arranca a guitarra.

Quem se tolera em salões, em cafés,
Cujos tapetes não valem os pés
Dessa garota que agarram na marra?

Por isso, clama o paupérrimo poeta,
Que evoca o nome latino: Violeta,
Membro invulgar da família dos Parra.

 

 

Carta a um imigrante sírio

Esta é sua nova morada
Depois de um ano de fuga
A passos de tartaruga
Por terra e mar, camarada.

Sinta-se num lar, venha e entre,
Beba dos vinhos mais suaves.
Farei a cópia das chaves
Deste seu cômodo-ventre.

Deixo tudo à sua mercê
Para que esqueça todo asco
Que a tragédia de Damasco
Ainda produz em você.

Sei da graúda cicatriz
Que o envergonha desde a perna,
Graças à guerra que inverna
Em seu belíssimo país.

Reclama que a dor é tanta
Pois não veio a primavera
Do modo como se espera
Quando um povo se levanta.

Vem-lhe um lamento espontâneo
Se lembra o bote que chega
Sem filhos à terra grega
Pelo Mar Mediterrâneo.

Vou lhe dar afetos, banho
E um prato de arroz com peixe:
Penso que, assim, você deixe
De ser um distante estranho.

 

 

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This Article Has 2 Comments
  1. Roberto Monteiro Reply

    Seria de cordel??? Corajoso este crítico… a este, eu me animaria mandar meus escritos…

  2. Jonathan Mendonça Reply

    Muito bom! Parabéns pelos poemas!

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