As lâminas intersticiais de Paulo Rodrigues | por Antonio Aílton

 

SAO GREGÓRIO - As lâminas intersticiais de Paulo Rodrigues | por Antonio Aílton

 

 

A poesia é uma soleira de possibilidades e sutilezas que pode acolher dimensões insuspeitas. É o que o poeta Paulo Rodrigues vem nos mostrar com maestria no seu recente livro, A Interpretação para São Gregório (Penalux, 2019) – livro com o qual o autor recebeu o meritório Prêmio Álvares de Azevedo no Concurso da UBE (RJ).

A primeira grande clarividência de Paulo Rodrigues está justamente na porta de entrada do livro, que é o título. Causa sem dúvida estranhamento a quem está acostumado aos títulos regulares, os quais têm atingido, por vezes, o cansaço do pastiche. Estranhamento porque nos empurra para o conceito religioso, da tradição católica, aparentemente distante, portanto, do universo da poesia.

Mas o que o poeta faz é justamente uma reviravolta ao conceito, uma secularização em favor da poesia, no sentido de apresentar uma interpretação intersticial, que corresponde a uma dupla torção: a atualização do lado humano, sapiente, político, social e justo incrustado à imagem do prefeito-papa-santo Gregório Magno (qualidades que, independentemente do cunho religioso ou eclesiástico, estão reconhecidamente ligadas à própria pessoa de Rodrigues); e, por outro lado, a oportunidade de praticar uma poesia que, sem deixar as inflexões da solitude gregoriana e os impactos das forças do mundo no indivíduo, dá abertura a uma voz em favor das questões sociais e da defesa, pela garganta da figuração poética, da dignidade vital e de cunho reivindicatório – sem que em nenhum momento deixe sua razão fundamental de ser: essencialmente poesia.

Num dos mais fortes poemas do livro, Café preto, no qual Rodrigues se utiliza de uma atmosfera cinematográfica, encontramos a denúncia de uma violência que invade tanto os espaços outrora tranquilos, tais como o espaço de caráter campesino, uma das referências vivenciais do poeta, conforme observou o poeta Fernando Abreu no prefácio do livro, como também os espaços da comunidade e da intimidade quieta, os espaços da memória de um outro estilo de vida, já agora violado, violentado, com o peso de um mundo que beira a ficção científica ou uma bárbara profecia de HQ:

 

CAFÉ PRETO

as mulheres juntavam
cuidados e saudades,
nas fotos antigas.

dois meninos brincavam
no meio fio, pintado de cal;
escoltados pelos olhos
das formigas.

os vingadores desceram
do carro atirando nos
inimigos, que estavam
na rua.

os meninos tiveram as camisas
atravessadas pelas balas.
a ambição escorrega
nas lágrimas, de uma das mães.

a outra ficou no chão
olhando para o sangue
na asa da xícara.

                                   (p. 19)

 

Já no belíssimo Interpretação para São Gregório, abaixo, deparamo-nos com aquele solitário limiar entre o mundo, o sujeito, seus fantasmas e sua intranquilidade, um sujeito que é impossibilitado pelas circunstâncias de salvar tudo ao mesmo tempo, e, na soma de toda a responsabilidade que assume ante a realidade, torna-se o próprio sacrificado, e sacrifica (sobretudo a casa, este lugar último para onde devemos conduzir com alegria o nosso presente e o nosso tesouro). São Gregório, em algum momento da sua vida há de ter feito aquela pergunta vital que fica ecoando na intimidade: “Tudo vale a pena?…” (aguardando uma difícil resposta que talvez só Fernando Pessoa ensaiaria muitos anos depois). Eis o poema:

 

UMA INTERPRETAÇÃO PARA SÃO GREGÓRIO

arrasto séries de memórias
num saco de gatos,
jogo-as numa manjedoura,
mas elas miam alto.

arrasto os pelos
pelas ruas; não consigo deixar
marcas nem respostas.

encontro mortos
por onde passo.
entro em casa
e não levo incenso
ouro ou mirra .

                              (p. 57)

 

O poema aponta também para um outro caminho de Paulo Rodrigues, o pisar entre o presente e o passado, o presente e a duração das memórias. Há um fértil chão de memórias, reminiscências emergentes e uma rica convivência com os mortos (opa!, mas diferentes daqueles mortos do poema acima, que são aqueles a quem Cristo diria para deixá-los entregues ao próprio enterro), no livro como um todo. E não apenas nesse último. Diríamos que em toda a poesia de Rodrigues, desde O abrigo de Orfeu (Penalux, 2017) e Escombros de ninguém (Penalux, 2018), ele nos apresenta também laivos de um mundo e de uma cultura que se esvaem, ante o vórtice avassalador dos problemas e modos de vida urbanos e mundiais.

Esse chão é sobretudo o familiar, o chão dos lugares vividos e da experiência da comunidade, no sentido de Walter Benjamin. Inclusive o chão da oralidade. Não à toa, um dos férteis procedimentos modais do poeta é a narrativa, que ora ou outra insinua-se na base dos poemas (Cegueira, Seminômades, Antártida…), não para torná-la menos (in)tensa, mas para enriquecê-la. E mais: aquela narrativa comum aos causos populares, perceptível mesmo embaixo do rigoroso aparato laminar da poesia de Paulo Rodrigues. Neste caso, podemos agregar aí esse valor da memória como transcendendo a afirmação da soleira do indivíduo e atingindo o registro da experiência sensível social-comunitária. Vale a pena lermos esse cartaz, no Desaparecido:

 

DESAPARECIDO

os velhos continuam
arros velhos continuam
arrastando as sandálias
no quartos.
 
as quatro da manhã,
o cheiro do café
reacende a infância.
 
meu bisavô está lá,
toca fogo no chiqueiro
dos porcos.
 
todos estão lá!
a ausência é só minha
e só em mim

                                    (p. 55)

 

Nessas verdadeiras lâminas poéticas, a concisão e o rigor agudizam o sabor das vivências e os impactos comoventes da realidade, das relações e da memória. São estes elementos que, justamente, conforme já observou Abreu no prefácio do Interpretação…, “refrescam” organicamente a aridez da disciplina poética. Essa opção pela concentração formal, que exige labor e certa frieza no trato com a linguagem – conforme lições exaltadas, na verdade, desde a alta modernidade francesa às poéticas contemporâneas – em contraste com as paisagens sensíveis e emotivas constitui-se em mais um dos pontos intersticiais dessa poesia, isto é, na sua possibilidade de se fazer entre regiões, entre dimensões.

Na leitura dos últimos três livros de Rodrigues, é perceptível um amadurecimento cada vez maior no seu fazer poético. Amadurecimento no sentido de que, embora a literatura tenha suas peculiaridades e idiossincrasias, qualquer atividade deve encaminhar-se para uma qualidade cada vez mais afiada, superior. No caso de Paulo, fico feliz que ele tenha dispensado, ou dispense cada vez mais certas estruturas que acabam por se mostrar como produções de efeitos construtivos dentro do poema. Neste sentido, a experiência consciente da escrita, a inclusão cada vez maior dos aspectos memoriais, sociais e cotidianos, a tomada simbólica de uma personagem interpretativa da proposta geral e uma aguda sensibilidade vertida no poético transformaram o breve Uma interpretação para São Gregório num grande livro.

 

Antonio Aílton| Autor de Martelo & Flor: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea (Tese. EDUFMA, 2018) e Cerzir – livro dos 50 (Poesia. Penalux, 2019).

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This Article Has 1 Comment
  1. Roberto Monteiro Reply

    O cara é bom, pelo que se pode apurar da pequena amostra grátis… Parabéns e obrigado pela resenha…

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