“Sobre-humano” – conto de Adriano B. Espíndola Santos

ADRIANO CONTO ILUSTRAÇÃO - "Sobre-humano" - conto de Adriano B. Espíndola Santos

 

  Sobre-humano

Acordar sempre é uma tarefa delicada, demorada. Para quem não dorme bem, principalmente. Nessa noite, havia dormido às três, três e meia, da manhã. Paulo não chega tão tarde, mas resolveu surpreender. Entrou mudo, passos firmes e ligeiros. Não quis esconder o tracejar. Não se esgueirava, como antes. Não estava, por certo, preocupado em disfarçar a omissão.

Abriu a porta do quarto e passou liso para o banheiro. Ouvia-se o chacoalhar. A perturbação volátil embebia o ar. Derrubou sabonete, xampu, várias vezes, e foi ao chão em igual medida. Pensei em ajudá-lo. Contive-me, por medo também. Tenho resquícios de brio. Quis me preservar. Mas, no ato, ele me chamou: “Lourdes! Lourdes!”. Banhada de suor, enxugando a testa e afastando os cabelos, para ver melhor, entrei. Pingos de sangue ofuscantes riscavam o azulejo do estreito corredor, próximo ao vaso. Virei-me e vi-o contido, paralisado, coberto de sabão. Liguei novamente o chuveiro para tirar o excesso e encontrar a origem do estorvo derramado.

Pedi para que me ajudasse, não suportava o seu peso. Células coesas, intrincadas, absurdamente abandonadas. Não tenho ossos para tal. Ainda assim, impassível, forçava o peso de seu corpo, como se já não bastasse o apelo moral irresistível.

Derramei um volume imenso de água, para eliminar a camada lisa. Nada. Não conseguia alçá-lo à dignidade. Voltei à cama, na qual me esperava Aristóteles, o gato pensador e traquino; meu confessor. Paulo insistia que era subterfúgio para não termos filhos. Idiota. Tratava mal a mim e ao bichano, na mesmíssima proporção do desprezo.

Passava de duas da manhã e, acuada, me guardava na cama, procurando uma posição para sumir; um buraco fundo, que pudesse me conduzir ao subterrâneo, longe das artimanhas da realidade algoz. Escutei, novamente, o reboliço. A cada estrondo, o
reflexo em mim. A pressão e a ansiedade aumentavam de modo progressivo e me puxavam a ele. Pensava no meu esforço sobre-humano para existir; nas infundadas aflições de um homem que não se importava com nada. Nada. Ao mesmo tempo, pensava em fugir e deixá-lo ali, entregue à própria sorte. Pensava que ele fazia isso porque teria a segurança da minha presença. Pensei, também, que não seria a hora.
Pensei muito e, de fato, uma cristã temente não pode abandonar um irmão – acima de tudo, além de amigo, era irmão; dez anos de dura caminhada.

Só consegui me desligar quando o homem deitou; como um vulto, saiu e quase pulou na rede, colada à porta do banheiro. Automaticamente, dormiu e ressonou feito um porco cevado. Podia ser ouvido a uma distância de dois quarteirões. No réveillon, Lúcia perguntou como conseguia dormir com um trator ao lado. Desconversei; disse que era exagero e tinha me acostumado, “Anos de luta, miga!”. Ela completou: “É o amor!” – sorriu e saiu, leve. Eu, pesada. Pesada do passado e porque o ano só estava começando, mas ainda teria de enfrentar mais uma longa jornada. Se eu quisesse. Se eu quisesse. Lúcia me dizia, “Amiga, você não é obrigada!”. O empoderamento agia, e o enfrentamento me assustava. Ademais, não teria coragem de abandoná-lo. Ele não sabia lavar as próprias cuecas. Ouvi um rapper determinar: “A classe média não sabe lavar as próprias cuecas”, e achei bem apropriado.

Sufoquei-me na sequência de perspectivas bisonhas. E assim, mais uma vez, fui obrigada a tomar o pesado ansiolítico – que chamo, para os chegados, de relaxante muscular, para não levantar suspeitas –, mais pesado que o peso do Paulo; mais pesado que a minha consciência.

Com uma cortina banal, daquelas que deixam o sol entrar, acordei com um fio de luz em meu rosto. Marcava dez horas. Um bem-te-vi ecoava alto a serenidade. Por sorte, me lembrei que era domingo e não acordei esbaforida, correndo para me arrumar e sair para o trabalho. Tentei retomar o sono. Ainda zonza pelo remédio, pensei em Paulo. Paulo, sem ver nem para quê, atravessa meus aforismos.

Virei-me, em sua direção, lentamente, com medo de acordá-lo. A rede já não raspava o chão. O lençol revirado. A rede mexida. Não havia sapatos e roupas imediatas, que Paulo deixava estocadas no cabide central. O canto mais limpo. Senti o peso da ausência. Paulo teria ido embora? Paulo não seria capaz, nunca o abandonei.
Paulo não estava mais, constatei, olhando ao redor, absorta. Não deixou carta nem nada.
Foi-se e levou consigo todo o peso. Nada mais.

 

ADRIANO 2020 300x300 - "Sobre-humano" - conto de Adriano B. Espíndola Santos

Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora. Colabora com a Revista Samizdat. Tem crônicas e contos publicados nas Revistas Berro, InComunidade, Lavoura, Literatura & Fechadura, Pixé, Ruído Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

 

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