ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista a escritora Morgana Kretzmann

MORGANA 2 - ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista a escritora Morgana Kretzmann

 

 

FERNANDO –  Como foi partir de um tema tão dolorido como assédio sexual na infância para desenvolver esta narrativa que parece ter pontos em contato com as máscaras do teatro, nuances de personagens, emoção presa-retesada, guardada, os sub-textos do que não se diz. Como foi trabalhar a personagem nesta contextualização?

MORGANA – Abuso infantil é um assunto pouco discutido em pequenas cidades do interior, como a que eu cresci.
Na década de noventa era assim, hoje, em pleno 2020, segue assim. Um tabu que, por envolver crianças e normalmente alguém próximo, as pessoas preferem não expor, preferem não se expor.
Estas pessoas passam então a viver uma mentira, mentem para si que as crianças vão esquecer o que aconteceu, por serem crianças, mentem umas para as outras, tentando conviver normalmente como se nenhum crime tivesse acontecido. Uma cortina de fumaça, de pó, que acoberta e joga para o esquecimento tudo que não deveria ter acontecido. Esta é a história que Sofia, a protagonista, e Aline, sua irmã mais nova, vivem. Aline fica em Tenente Portela e acaba tendo que enfrentar a dura realidade de viver, conviver todos os dias, com um passado que destruiu sua infância. Sofia foge, foge para a mentira que ela viu os adultos viverem, foge de tudo que ela não queria ter vivido. Nessa fuga, ela busca convencer a si mesma que aquele passado no interior profundo do Rio Grande do Sul nunca aconteceu com ela. Na sua fuga, Sofia levanta uma nuvem de poeira vermelha da terra de chão batido da sua cidade natal, porém, treze anos depois, essa poeira assenta e tudo fica à mostra.

 

FERNANDO – Você tem um escrita que acolhe sua personagem, mas não a previne dos tombos. Como foi chegar a uma filigrana de linguagem para que todo processo de trauma/dor fosse experienciado pela sua linguagem?

MORGANA – Sou atriz e roteirista. Trabalhei muito com improvisação e criação de histórias. Entendo que minha linguagem é mais dramatúrgica, cinematográfica, como a maioria dos leitores falam. Minha escrita começa de forma imagética. Preciso ver a cena toda na minha cabeça, inclusive o local que ela se passa, os objetos que estão nela, a sua luz, a posição das personagens, o tom da voz, os gestos que elas fazem quando falam, como se movem. Depois escrevo falando alto não só os diálogos, mas as cenas inteiras. Então para escrever o “Ao pó” cheguei a ficar muitas vezes sem voz, com dor na garganta, principalmente quando passava de doze horas concentrada, escrevendo e reescrevendo.

 

FERNANDO – A mãe parece guardar um silêncio opressor sobre o assédio do irmão. Mas em certa parte ela engendra uma ação como uma represa que se rompe. O trauma parece que se fortalece com o silêncio? Por quê?

MORGANA – Porque o silêncio é a melhor comunicação entre elas, sempre foi, como Sofia mesma diz. O silêncio é a melhor comunicação em cidades do interior como as de Tenente Portela e Três Passos (lugar que me criei) no noroeste do Rio Grande do Sul. São cidades de colonização predominantemente alemã e italiana que guardam uma espécie rara de dureza bonita na hora de demonstrar afeto, e muitas vezes, usam de uma dureza retida, contida na hora de demonstrar indignação. Até a década de 50, não só nestas cidades, mas principalmente nas localidades rurais destas cidades (como é o caso da Romana Seca que é citada no livro) a maioria das pessoas ainda falava num dialeto do alemão e do italiano.
Então havia um atrito na comunicação entre os que falavam este dialeto e os que não falavam, entres os mais jovens e os mais velhos. Nesta época muita coisa era conversada e entendida com o silêncio.
Hoje somente os mais velhos ainda falam este dialeto, mas o silêncio segue sendo um tipo de linguagem que todos entendem.

 

FERNANDO – A dificuldade de expressar afetividade pelo dramaturgo Carlos Ilhas parece um contraponto ao fato dele lidar com as emoções de seus personagens. A escrita seria uma forma de trabalhar em nós, algo que não estamos focados? A escrita-corpo ainda é uma forma de Gestalt?

MORGANA – No livro as personagens tentam manter implícito o que deve, na visão delas, permanecer escondido.
Este é o grande foco da Sofia, por exemplo, e seus sonhos, seus pesadelos, que sãos os capítulos em itálico no livro, acabam sendo os agentes que não lhe deixam fugir para essa realidade inventada dela, que não deixam o pó ficar embaixo dos móveis da casa por muito tempo. Mas a personagem da mãe, quem sabe, seja a mais enigmática, aquela em relação a quem nunca saberemos o real significado dos silêncios.

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