ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Rafael Fernandes

 

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Embora seu romance não tenha nenhuma questão sobrenatural, você usa o tema do fantasma de forma poética e até realista, colocando a personagem Ana como uma figura\emblema desta relação entre vida e morte. Como foi esta elaboração deste espaço imanente do romance?

Rafael FernandesAs questões relativas a um outro mundo são desenvolvidas de forma muito natural. Por isso o viés realista em todo o livro. Às vezes elas recebem o tratamento poético necessário, claro, e algumas cenas até acho que fazem referência ao sobrenatural sim. Mas ele aparece na forma das questões relacionadas ao espírito. E trata-se de vivenciar todos esses eventos no mundo em que estamos, como parte dele. De transformar fantasmas sem substância que residem em um mundo inacessível em almas com densidade para habitar o romance ou em ideias para habitar o entendimento. Há uma intersecção dessas três esferas que condicionam uma à outra: o real, ou os fatos mundanos, que recaem muitas vezes sobre o autobiográfico; o poético, ou o fantasioso; o metafísico. No caso específico da Ana ela representa uma ligação entre dois mundos realmente. Mas note-se que ainda assim ela habita o nosso mundo. Essa ligação é feita aqui. O outro mundo na casa da Ana se encontra no quarto dos fundos. Parece um quarto separado, diferente, mas faz parte de sua casa. A própria Ana é caracterizada como uma dona de casa comum e o narrador se surpreende como ela, que considera não ter nada de especial, possa se comunicar com outros mundos.

 

A mãe do narrador escreve uma peça\ texto quase como um espaço duplo sobre sua vida\desaparecimento. Aquela frase sempre pensei “A vida imita a arte” Não seria justamente o oposto, a arte sublima a vida nas suas lacunas que, às vezes, não podemos preencher, a vida é material, estamos sempre lidando com sua objetificação. E no romance existem estas duas vias; um mundo real, e também um onírico?

Rafael Fernandes – Sim, há um mundo onírico e um mudo chamado “real”, mas eles convivem lado a lado. Não há distinção ou separação real entre eles. Por isso a surpresa do narrador ao caracterizar a lanchonete Anos Dourados no início do romance em oposição ao bairro à sua volta. A lanchonete representa um mundo onírico, à primeira vista representa quase uma falha no bairro, parece existir em um tempo diverso. No entanto, ela simplesmente existe ali junto com as casas que “habitam o tempo presente”. O narrador sai da lanchonete para as ruas do bairro e vice-versa e não é preciso empreender uma complexa viagem temporal como num filme de ficção científica. Ou como num filme de ficção científica mais sofisticado, espero, conseguimos acreditar que basta um passo para estarmos em outro mundo. No livro basta atravessar a porta giratória da Anos Dourados por exemplo. A mãe do narrador parece atravessar as páginas do texto para a vida real e vice-versa com a mesma facilidade. Procurei, ao justapor espaços tão diversos,  aproximá-los. É claro que nem sempre se faz essa viagem incólume (de um mundo a outro, da ficção à realidade, por exemplo). Às vezes ocorre como no filme “A Mosca” citado no livro. Ao viajar de uma cápsula a outra no filme, o personagem fica com um pouco de DNA da mosca nele. Às vezes ao atravessar a porta giratória da Lanchonete Anos Dourados o seu casaco fica preso na porta. Ou no caso do texto da mãe, a personagem perde as roupas ao passar de um plano a outro. Está nua no texto. Não há sempre um exato paralelismo entre as instâncias, entre o real e a ficção por exemplo. Cabe ao romancista preencher esses espaços ao percorrê-los, ou desnudá-los ainda mais, mostrar as incongruências. Para buscar compreendê-los.

 

A procura de Nina pelo seu gato parece uma imagem do que não podemos domar, as perdas, o exílio, a morte. Ao mesmo tempo, tenho visto na vida cotidiana, um amor das pessoas pelo bichano, mesmo que um bichano tenha uma individualidade livre. Como foi este uso do felino nas suas matizes até psicológicas entre a pulsão do afeto pelo outro?

Rafael Fernandes – O gato, assim como a Ana, é um personagem que representa uma ponte entre a vida e a morte, entre este mundo e o outro. A Nina tem uma relação com o gato de muito afeto e de grande compreensão de seus gestos e necessidades. Por isso o narrador quase imediatamente percebe nela uma qualidade rara de “falar com fantasmas”, que nada mais é que uma relação especial com o mundo, uma capacidade de comunicar-se com as pessoas, estejam elas próximas ou distantes, neste mundo ou no outro. Esta comunicação não tem nada de sobrenatural, claro, pelo contrário. Devido à sua maturidade, a uma profunda percepção do seu interior e do que acontece ao redor, ela é capaz de sentir as pessoas, se aproximar delas e fazer com que elas estejam perto da gente. Assim a gente consegue lembrar delas. Conhecê-las bem mesmo quando já se foram. A Nina consegue se comunicar até com quem não pode se comunicar, ao menos não verbalmente, como o seu gato Donatello por exemplo.

Por isso também há uma identificação afetiva entre a Nina e o narrador. Há um certo paralelismo entre suas histórias e o gato atua não apenas como uma ponte entre este mundo e o mundo dos mortos, mas entre o mundo do narrador e o de Nina. Como procurei demonstrar, não há uma real separação entre os mundos, aquilo que vivenciamos em um inevitavelmente influencia o outro. O que a alma busca buscamos aqui no mundo sensível por exemplo. Assim é que a busca do narrador e de Nina por seus fantasmas seja pelas ruas do bairro, seja apenas no plano metafísico, no campo da memória, inevitavelmente vai aproximar os dois neste mundo.

Quanto ao aspecto psicológico, como observado, a figura do gato representa um trauma para o narrador de certa forma. Para a Nina, ao contrário é um símbolo de estabilidade e amor correspondido. Temos, através desse paralelismo, uma investigação mais profunda do lado emocional dos personagens, a capacidade de dar e receber afeto, e vemos como a personagem da Nina , tomando por base o momento em que ela e o narrador tinham a mesma idade, é muito mais madura.

Há uma identificação da própria Nina com o gato acerca dessa qualidade destacada na pergunta, o fato de ser uma individualidade livre. O felino, embora muito amado, parece bastar a si mesmo. A Nina à medida em que toma consciência de seu corpo e de seus sentimentos mais íntimos também parece bastar a si mesma de muitas formas. Ter a medida correta de amor-próprio.

Mas a Nina não é infalível. Como você bem observou, há coisas que não pode controlar, especialmente numa fase de transição, em que se prepara para ingressar na vida adulta. Volto ao tema das questões anteriores, da passagem de um plano a outro, de um mundo a outro, como da adolescência à vida adulta. A passagem se dá sempre entre planos justapostos, períodos consecutivos, mas não significa que não haverá perdas no caminho. Ou descobertas acerca de nossas necessidades. Assim é que Nina temporariamente deixa a razão de lado e faz algo no início do romance que não entende porquê. Em seguida perde o rumo. A passagem da adolescência à vida adulta é algo que não pode domar completamente, como nossa passagem da vida à morte. É representativo que justamente nesse período, seu gato esteja desaparecido.

 

Como foi usar um narrador tão próximo ao autor? Qual tensão criou com esta posição de narrar?

Rafael Fernandes – A tensão entre o narrador e o autor é parecida com aquela estabelecida pelos planos que conversam entre si no livro (este mundo e o outro, o real e a ficção, o cotidiano e o poético por exemplo). Como autor converso com o narrador buscando um mútuo entendimento. Uma proximidade. Procuro me compreender através de suas reflexões assim como o narrador procura compreender a si próprio através de suas ações. É mais uma relação/ tensão horizontal do que vertical contudo. Eu me coloco no mesmo patamar embora perceba as questões do narrador do alto, digamos dessa forma, assim como o narrador, embora tente fazer com que suas questões, através do entendimento, alcancem um lugar mais elevado também, o da alma, coloca sua alma no mesmo patamar dos acontecimentos sensíveis. À primeira vista parece haver uma tensão real, um desnível entre o narrador e sua consciência ( mais elevada a partir do momento em que as ações passam pelo filtro do entendimento) assim como parece haver um desnível entre o autor e o narrador ( eu sendo uma forma de consciência sobre aquilo que ele compreende ao longo do livro ). Mas trata-se de atravessar portas mais do que subir escadas para alcançar o entendimento tanto para mim como para ele(para o narrador acerca dos fatos, para mim acerca do que ele pensa). Embora algumas vezes no livro haja a indicação de pular muros e subir escadas, pode ser uma metáfora para indicar um entendimento superior que na verdade está ao lado, ou dentro.

 

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