O pai na zona – conto de Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto

 

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L’ordre est le plaisir de la raison : mais le désordre est le délice de l’imagination. (Paul
Claudel)

 

Naquela noite algo me surpreendeu. Voltei para casa em torno da meia noite. Sentia-me assim. Fui ao banheiro. Olhei-me. No espelho. Vi-me dois. Metade do meu rosto era uma pessoa. Era uma metade outra, de uma pessoa outra, que não era outro senão eu mesmo.

Essa metade estranha era pouco nítida, movia-se como uma superfície aquática em lento movimento.
Os olhos eram os mesmos, o olhar, não, semivazio.

Um olhar era de dúvida e o outro de certeza.

Levantei as mãos, para que ficassem visíveis ao espelho. Movia-as. Fazia-o de forma que ambas fossem na mesma direção, mas as via mover-se em direções opostas. Mais que isso: elas moviam-se numa lentidão impossível, como que desenhando voltas e espirais. Uma impressionante câmara lenta-lenta.

Olhei a parte de baixo de meu corpo. Faltavam os pés. Mesmo assim, continuava a poder andar. Resolvi voltar para a rua. Não sei por quê. Ia falar com Odair. Ele talvez pudesse me ajudar.

Tomei o caminho de sua casa. À pé.

Logo que sai, vi as tantas árvores da cidade. Uma musica surda tocava no meus ouvidos. Um zumbido.
Nas árvores havia gente. Era noite negra e as árvores estavam lotadas de pessoas em todos os galhos.
Algumas sentadas, outras em pé. A princípio, senti estranheza, pois percebi que isso era normal.

Em algumas árvores pelas quais eu passava, as pessoas me diziam algo. Muitas me perguntaram se era o Odair quem eu procurava. Para algumas. Respondi. Sim. Onde está meu pai, perguntei para alguém que passou caminhando, fumando um cigarro. Sua resposta foi um longo murmúrio ou mesmo um guincho.

Tomei a longa subida para o centro. De todas as árvores me chamavam, mas eu não podia parar, pois tinha que encontrar meu pai.

E o Odair? Por vezes me perguntava.

Que Odair?

Se meu pai soubesse que eu iria buscá-lo na zona me passaria uma imensa descompostura. Mas vamos lá; tomemos o caminho.

Segui em direção à zona do meretrício. Era longe. Teria que atravessar o centro.

Cheguei à praça da catedral. As pessoas nas árvores agora gritavam e me chamavam e faziam grande algazarra. Era um barulho ensurdecedor dentro e fora de minha cabeça. Que diminuía e aumentava, se calava e urrava. A catedral estava ali e eu precisava rezar, pois não estava aguentando. Era um tipo de igreja imitando o gótico, catedral de cidade do interior.

Corri até a porta. Estava fechada. Fui às portas laterais. Também estavam fechadas. Não aguentei mais e caí de joelhos – ainda estava sem pés – e rezei. Rezei longamente pelo meu perdão. Deus estava ali com certeza. Sua sombra era a sombra da catedral, iluminada por focos de luz fria. Rezei profundamente e me vi misturado a todo o universo. E chorei.

Levantei-me, enfim. Segui em direção à parte traseira da igreja. E continuei. Dois quarteirões depois estava diante do muro lateral do cemitério municipal. Queria entrar, pois esse era o meu destino: falar com Deus. Mas estava fechado; que desespero!

Com uma perna apoiada no tronco de uma árvore e a outra no muro, fui subindo – e principalmente com a ajuda dos habitantes daquela árvore, que me alçavam e gritavam. Cheguei ao topo do muro. Pulei lá de cima. Um tanto alto, mas não doeu porque ainda estava com pés apagados. Lá estavam os túmulos.

Fui visitando-os. Como se tivesse sido convidado por eles. Andava sentindo-me flutuar. Parava em cada um e falava com os donos. Este, uma família Silva, aquele outro, Souza, este aqui, Calleiro. Muitos deles conversavam longamente com os anjos de pedra que guardavam as portas de seus túmulos.

Percebi que aquilo também se tornava uma algazarra, como ocorria com os moradores das árvores.
Estes, por sua vez, falavam com os moradores dos túmulos.

O conjunto todo produzia uma tal algaravia que eu me sentia enlouquecendo. Então eu gritava.

Depois de um tempo, me acalmei e corri para a porta. Estava aberta. Fiquei surpreso. O dia já clareava.
Lembrei-me que tinha que salvar meu pai. Que estava na zona. Que era do outro lado da cidade. Meu pai gostava de putas. Estivera, mesmo, apaixonado por uma.

As pessoas das árvores riam de mim, porque tinha meu pai na zona.

Desci a rua do cemitério. Fui dar no córrego que atravessava uma boa parte da cidade. Era poluído. Não se sabia quanto. Eu precisava ir nadando. O povo das árvores se matava de rir e eu me sentia mais e mais ridículo.

Entrei no córrego. Era muito raso. Malcheiroso. Não havia como nadar, fui andando com a água até um pouco acima do joelho. Por vezes tropeçava. Caia com a boca naquela água turva. Minha mãe estava numa dessas árvores e gritava “sai daí, vai buscar teu pai na zona!”
Saí do córrego.  Minha mãe já estava em outra árvore. “Vai buscar, moleque!”

Saí do córrego. Estava com a roupa toda molhada. Tirei-a toda e me desfiz dela. O povo das árvores ria como num vozerio de pássaros. Eram gritos e vozes estridentes dentro e fora de meu crânio.

Precisava ir para casa. Subi a rua paralela à do cemitério. “Traidor, não quer ir buscar teu pai na zona!”.
Sentia toda a natureza em volta de mim a tremer e a ranger os dentes num chiado apavorante.

Havia prédios antigos nessa rua. Em frente a um deles estava estacionado um caminhão de bombeiros com sua escada giratória Magirus. Estava semi-esticada. Ao menos uns vinte metros.

Devia ter ocorrido algo naquele prédio. Mas a escada não estava encostada nele Estava apontando para o céu. Por que será que os bombeiros a deixaram aí? Eu precisava subir.

Não havia ninguém no caminhão, no vermelho caminhão.

Impelido por uma necessidade crescente e pelos gritos de minha mãe, que agora estava em uma árvoremais próxima, subi na carroceria do caminhão.

Mas, por que os bombeiros o haviam deixado ali, daquela maneira, sem ninguém tomando conta e com a escada meio estendida?

Comecei a galgar os degraus. Eu precisava subir. Fui indo até a altura máxima. O riso sarcástico dos arborícolas me perseguia. Minha mãe urrava e guinchava como uma locomotiva freando no trilho seco.
Pula. Vai. Salta, berravam todos. Anda! Já! Dizia minha mãe. Mate-se!

O barulho era ensurdecedor. Eu precisava saltar. Era imperativo que o fizesse. Olhei para baixo. Para todos os lados. Minha cabeça formigava. Eu precisava saltar. Precisava. O ruído era tremendo, e então saltei. Atirei-me no vazio, diante de toda aquela gente e de minha mãe que, das árvores, ou me vaiavam sem parar ou me aplaudiam de pé.

E, então, as vozes, até aí numa orgia de sons, calaram-se subitamente. Foi um grande silêncio. Somente quebrado pelo grito de minha mãe: vai canalha,vai tirar teu pai da zona!

 

Gustavo Adolfo é/foi professor em uma universidade pública do Paraná. Esteve em toda a sua vida escrevendo; escrevia livros da área da psicanálise. Escrever, para ele, é dar sentido, é dar continuidade à vida, que em si mesma, segundo ele, não tem sentido prévio. Sentido se inventa. É para isso a literatura. Atualmente, aposentou-se, embora ainda oriente alunos como voluntário. Produzir contos é sua nova/pouco nova forma de escrever.

 

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This Article Has 4 Comments
  1. Fatima Reply

    MT bom texto: caminhamos juntos com ele … sem pés. Parabéns

  2. Roberto Monteiro Reply

    Alter ego??? Só sei que foi uma viagem à psique de um ser esquizofrênico…

  3. Heloisa Reply

    Muito bom…
    Tão latino…ne lembra Borges

  4. Marcia Regina Ferreira Reply

    Gustavo, que conto envolvente e tocante. Viagei com ele em meio a muitos sentimentos e emoções. Posso lhe dizer que lê-lo é um diálogo comigo mesma. Ter um pai na zona, uma mãe que grita, seres barulhentos que vivem de forma “aparentemente em lugares estranhos” e nossa pro-cura é uma excelente analogia com o sistema mundo que vivemos e o nosso desejo profundo por sentido. Obrigada!

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