4 sonetos de Viriato Gaspar

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PELAS SOMBRAS QUE ASSOMBRAM NOSSOS MEDOS
|ao poeta Carvalho Junior|

Os que tivemos sorte resistimos.
Vamos crestando os chapadões do mundo.
Tentando erguer as flores que não rimos
e remendar os rasgos no mais fundo.

Quem há de se trancar, se a dor não para,
entre fezes e sangue, mijo, botas?
Cadeira do dragão ou pau de arara?
A mulata assanhada ou a maricota?

Em nós há todo um batalhão de gritos.
Vladimir, Rubem, Stuart, Frei Tito,
seguem conosco os que tombaram atrás.

Há quem clame um Brilhante que deslUstra,
ou grite por Fleury, que hay quien le gusta.
Os mortos que sangramos não têm paz.

 

 

O CARRO-CÉU
|a Mário Luna Filho|

Deem-me um gole de luz, que a tarde escarra
seu vazio feroz nos meus joelhos.
Um vento frio emplasta os meus cabelos
de um cheiro opaco de silêncio e sarro.

Deem-me um naco de paz, que a tarde empaca
e o mundo agora é um caminhão de medos.
Não há como acender, na luz já fraca,
o gosto azul da vida e seus temperos.

Deem-me um caco de sol, que a tarde é pouca
e o grito que se engasga em minha boca
não basta ao cais falaz do que preciso.

Só quero um vão azul, com um céu ao fundo,
para hastear, no chão feroz do mundo,
por um segundo, o voo de um sorriso.

 

 

DESSORAÇÃO DAS SOMBRAS
|para Nauro Machado, em memória|

E quando a noite então vier trincar,
uma por uma, as dobras do silêncio,
há que inventar um céu mais fundo e pênsil,
um carrossel de estrelas por nadar.

E quando, já depois, a noite enfim
vier ranger angústias desbotadas,
rasgar uma canção na madrugada
para acender a aurora em seu carmim.

Talvez jorre um luar que te adormeça
e um pássaro que encharque tua cabeça
de claros de quintais, crianças rindo.

Soltar das mãos os pesos carrancudos.
Deixar que venha o mar, que alague tudo
num gozo infindo de mulher se abrindo.

 

 

A CICATRIZ POR DENTRO
|ao Padre João Mohana, in memoriam|

Fosse apenas pra mim aquele antigo
fervor de pecador, temor difuso.
Necessidade de inventar um abrigo
que se esfumou no tempo, pelo uso.

Ou mesmo fosse ainda o inconsistente
pavor do Absoluto, os desconexos
sensos de culpas vãs, do adolescente,
que se guerreia em alma contra sexo.

Mais que palavras, debulhar silêncios.
Mais que silêncios, percorrer por dentro
tudo o que punge, dói, lacera e arde.

Nem sarça ardente ou mastro de fumaça.
Vontade de ancorar que o mar não passa.
Tumor de luz que arquejo em minha carne.

 

Viriato Gaspar |São Luís/MA|. Poeta e jornalista brasileiro, radicado em Brasília-DF desde agosto de 1978. Funcionário de carreira do Superior Tribunal de Justiça. Possui participações em relevantes antologias poéticas nacionais. Vencedor de muitos prêmios literários com uma bibliografia do mais alto nível. Ao lado de outros poetas como Luís Augusto Cassas, Chagas Val e Raimundo Fontenele, fundou e integrou o Antroponáutica, movimento literário do Maranhão de grande destaque na década de 70. É o autor de Manhã Portátil (1984), Onipresença (versão incompleta, 1986), Lâmina do Grito (1988), e Sáfara Safra (1996) entre vários outros títulos inéditos, entre estes o livro de sonetos Lapidação da Noite.

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