ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Flávio Adriano Nantes

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Leitura e autoria, com mediação da escrita. A literatura é uma arte de afetos feita por gentes.
De certa forma lemos um livro e gostamos do seu autor até expressamos conhecê-lo. Seu livro traduz esta arte de cruzar ficção e aspectos do autor. Aquilo que nos afeta no texto talvez seja uma intensa curiosidade autoral, vide, Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll, Clarice. Fale disso.

Flávio – Eu me iniciei muito jovem na literatura – leia-se leitura do texto literário propriamente dita porque estudá-la de forma sistematizada deu-se com minha entrada no curso de Letras – e me lembro que aos treze anos fui capturado (para sempre, eu suspeito) pela narrativa d’O morro dos ventos uivantes, que me impactou de forma profunda. Daí em diante minha vida ficou carregada de literatura.

Li tanta coisa, esqueci tantas outras (ainda bem porque assim posso voltar e reler a mesma obra), e todxs essxs autorxs que você indica, sim, eu xs li, mas talvez tenha mais intimidade com Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector. A impressão que eu tenho é que Caio me ensinou tudo acerca da homossexualidade masculina, antes mesmo de me debruçar sobre as proposições teóricas dos Gender Studies (uma das minhas pesquisas na universidade). Com Clarice, entendi a complexidade e profundidade que constituem o animal humano que às vezes come as entranhas branca da barata ou cachorro quente ordinário. Desejo sitiado é uma homenagem explícita à escritora brasileira. Minha dicção autoral mistura-se aos textos de ambxs escritorxs brasileirxs; digo isto porque tem a ver com o espaço limítrofe entre o factual (minhas leituras, por exemplo) e o ficcional, isto é, há elementos do meu bios que estão plasmados no interior do texto literário, claro que sem perder a medida do ficcional – a manipulação com as palavras.

Em relação à curiosidade autoral, acredito que, em certa medida, está para a ordem do fetiche ou voyeurismo acerca do sujeito da escritura. Compreender a cultura, a sociedade, a cosmogonia, o locus de enunciação, o tempo histórico, pode contribuir na apreensão de sentidos por parte do leitor/a; e como quem escreve está alocadx no interior desses elementos, escrever é, portanto, sempre falar de si, ainda que à revelia, pois não é possível se desvencilhar daquilo que constitui cada um/a. Isso, no entanto, não pode ser considerado o mais importante. Saber acerca da vida do sujeito da escritura pode, às vezes, causar efeitos angustiantes, como se inteirar que alguns/algumas escritorxs foram favoráveis a regimes fascistas ou ditatoriais, compactuaram com o patriarcado, o racismo, o sexismo, o machismo, o classismo, etc. Essxs autorxs devem ser rechaçados? Não! Pelo contrário, devem ser lidxs sem nunca eximi-lxs de seus posicionamentos. Acredito, muito, que a obra supera (ou deveria superar) essas questões e deve permanecer entre xs leitorxs.

 

Como as citações te ajudaram a desenvolver os enredos? Você partia de uma noção literal do texto citado, ou viajou em apenas tangenciar temas, estéticas?

Flávio – As citações, bem como as epígrafes, dispostas ao longo do Desejo são leituras que me afetaram de algum modo e todas se relacionam em certa medida com o meu texto. Antoine Compagnon, teórico e crítico literário, afirma de forma categórica que todo texto literário é uma grande citação sem aspas.
Neste sentido, os textos alheios enxertados aos meus tornam-se, por assim dizer, propriedade minha; são textos que se amalgamam e que em conluio um endossa o outro, um complementa o outro, um explica/reitera e/ou contraria o outro. Aqui também há um limite tênue em que não se pode precisar com exatidão o que pertence a mim e o que pertence ao outro. É fato já debatido e sabido que a literatura tem seu nascedouro na própria literatura. Ancora-se nela mesma.

O uso de outros textos nem sempre acontece no início do processo escritural ou pensado aprioristicamente. Eles acontecem. Isso alude, e eu compactuo com a ideia, a uma espécie de laboratório, de experimentos. Faço experiências com os (meus) textos para a materialização do projeto estético. Eu acredito no livre trânsito entre os textos que, resguardados os devidos créditos, pertencem a todxs.
 

 

As emoções dos personagens fluem de forma muito espontânea e bonita. Teu texto tem uma fluidez impressionante, o aspecto formal da elaboração da linguagem se casa tão bem com as filigranas de cada conto ou tema. Como foi chegar a este novelo tão bem enredado?

 Flávio –  Que pergunta linda! Eu a leio como uma crítica elogiosa em relação ao Desejo sitiado. Não tenho dúvida de que todo texto literário é materializado, conforme você menciona, por intermédio de um trabalho de ourivesaria. É um labor minucioso com as palavras até levar a termo a obra. Seja um texto fluido ou não; de linguagem mais erudita ou de aspecto mais informal; mais hermético e/ou obscuro ou mais popularesco, sempre haverá um fazer que engendra a manipulação do verbo. No momento em que escrevo, tento (ainda que fracasse) colocar à parte minha formação teórico-crítica acerca do texto literário porque do contrário seria impossível escrever, mas esse suposto esquecimento não significa ausência de uma luta homérica entre mim e as palavras. Geralmente elas vencem, às vezes, eu…

 

 Teus contos têm uma absorção poética grande. Como você trabalha a palavra quando inicia os contos?

Flávio –  O texto nasce, assim, de repente dentro de mim… E fica como uma lembrança ou um trauma que vou ruminando, remoendo, até não aguentar mais o peso, e ele vem desse abismo interior que não pode ser perscrutado e se materializa. Um nascimento que nada tem de natural, mas artificioso. O texto é um artifício. No caso específico do Desejo sitiado busquei o artifício das imagens, narrar pelas imagens; articulei as palavras de modo que os gestos e os movimentos das personagens, o desenvolvimento – idas e vindas – do enredo respondessem minha inclinação pela poesia que habita não apenas o Desejo, mas também em mim.

 

Flávio Adriano Nantes
11/12/2019, Campo Grande

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