A poeta e escritora baiana Rita Queiroz entrevista o escritor Marcelo Frota, autor de O Sul de Lugar Nenhum, recentemente lançado pela Editora Penalux

 

marcelofrotaoutubro2019 - A poeta e escritora baiana Rita Queiroz entrevista o escritor Marcelo Frota, autor de O Sul de Lugar Nenhum, recentemente lançado pela Editora Penalux

 

 

RITA QUEIROZ – Marcelo, você é professor, tradutor, crítico literário e escritor. Como concilia essas atividades? Em que medida há interferência de uma sobre a outra?

MARCELO FROTA – Conciliar tais atividades muitas vezes é um desafio quase sobre-humano. Ensinar no Brasil de hoje é um desafio, tendo em vista que muitas vezes os alunos estão embarcados na cultura de ódio que tem tomado de assalto nosso país. Quando adolescentes acreditam que não existiu ditadura militar, ou que agredir homossexuais não é errado, ensinar se torna um ato de resistência, um ato revolucionário. Antes de ensinar os conteúdos do currículo escolar, os educadores precisam ensinar humanidade. Esse parece ser o desafio da educação hoje em dia.
Quanto a parte da tradução, lido mais com textos acadêmicos, então é algo que acontece com naturalidade, visto que é algo que faço há quase vinte anos. Como crítico literário, procuro colocar no papel o que senti lendo o livro, quase numa conversa de leitor para leitor. Não sei dizer a medida de interferência entre essas atividades, mas posso afirmar que tudo que leio, de certa forma faz parte de mim, de forma voluntária ou involuntária, acaba entrando na minha escrita. Acho que sou um amálgama de um pouco de tudo.

 

RITA QUEIROZ – Como professor, quais autores procura levar para as tuas aulas?

MARCELO FROTA Ensino língua inglesa, e isso facilita muito trabalhar com diferentes gêneros e mídias.
Costumo levar poesia e autores como Robert Frost, Charles Bukowski, E. E. Cummings para as práticas educativas. Estou apenas citando alguns clássicos. Dos mais atuais, Rupi Kaur tem sido uma companhia frequente nas aulas. Gosto de levar música para trabalhar em um contexto diferenciado com os alunos, pois considero a letra de música uma forma de poesia, e nesse sentido, a lista é grande, passando por The Beatles, Stones, Led Zeppelin, Bruce Springsteen, Bob Dylan e principalmente David Bowie, por quem sou verdadeiramente apaixonado.

 

RITA QUEIROZ – Atuando como crítico literário, como vê a literatura brasileira contemporânea?

MARCELO FROTA Como algo em ebulição. Nos últimos anos, devido a editoras “pequenas”, que tem conseguido dar espaço para novos autores, muita gente boa tem conseguido um espaço que antes era restrito a poucos, pois entrar em uma grande editora, para um iniciante, é algo quase impossível. Dessa forma conheci o trabalho da Alexandra Vieira de Almeida, da Wanda Monteiro, o seu, minha querida Rita Queiroz e de uma autora que a meu ver vai figurar entre os grandes nomes da literatura brasileira nos próximos anos, que é a Patrícia Porto. Patrícia é maranhense, radicada no Rio de Janeiro e dona de uma poesia forte, posicionada e sem medo de colocar o dedo na cara dos canalhas que estão destruindo nosso país. A meu ver, nesses anos de fascismo tropical que temos pela frente, a arte é resistência e estamos muito bem
representados.

 

RITA QUEIROZ – O mercado editorial brasileiro é favorável a jovens escritoras e escritores?

MARCELO FROTA Acredito que sim, pois como disse anteriormente, editoras pequenas como a Penalux, a Lura, a Urutau, entre muitas outras estão mudando a face do mercado editorial brasileiro e abrindo espaço para novos autores. Acredito que muitos desses autores alcançarão um público cada vez maior, devido às redes sociais, ao boca a boca e ao empenho em divulgar suas obras. Acima de tudo, acredito que alguns alcançarão o grande público e no futuro estarão concorrendo a uma vaga na
Academia Brasileira de Letras e a prêmios importantes como o Camões ou até mesmo um Nobel.

 

RITA QUEIROZ – Como você vê a distribuição do livro no Brasil?

MARCELO FROTA Livro no Brasil sempre foi algo muito caro. Mas falar isso é chover no molhado. O brasileiro, no geral, gosta de ler e leria mais se os preços fossem condizentes com a realidade do país. A crise nas grandes livrarias, como Saraiva e Cultura tem tido um impacto na distribuição dos livros, mas menor do que muitos imaginavam. Temos um mercado on line muito forte, normalmente com descontos convidativos e entrega rápida. Um exemplo disso é a Amazon, que alia ótimos preços com entrega veloz e atendimento de alto nível para com seus compradores. Algo que eu gostaria de ver na Amazon são os livros das editoras pequenas. Normalmente os livros são comercializados no site por sellers, o que impossibilita o frete grátis, algo que é muito convidativo para quem compra livros com frequência.

 

RITA QUEIROZ – Há no Brasil um movimento forte de produção literária nas periferias  grandes cidades. Como vê esse movimento?

MARCELO FROTA – Esse movimento é de fundamental importância para a preservação da identidade brasileira e para a representatividade da nossa cultura. São movimentos que mostram a realidade do Brasil, algo que as elites, os “ricos de 3 mil reais” e os apoiadores fascistas do Bolsonaro querem esconder, querem negar como nosso.
Por isso que, filmes como Bacurau e Legalidade fazem barulho. E fugindo do Brasil, um filme como Coringa incomoda muito os brancos que tomam cafezinho nos bistrôs no final da tarde. Coringa é um filme de periferia, é um filme que mostra a realidade dos desprovidos e como uma sociedade doente adoece seus cidadãos mais necessitados. E quando um desses cidadãos enfrenta o sistema, ele é o doente, ele é o psicopata. No entanto, a sociedade que o formou passa de vilã a vítima, num círculo vicioso infinito. Nós criamos os monstros que nos assombram. Ainda criaremos muitos monstros antes de melhorarmos como humanidade.

 

RITA QUEIROZ – Você é nascido e vive no Rio Grande do Sul, estado brasileiro que faz fronteira com dois países hispânicos, Argentina e Uruguai, e apenas com um estado brasileiro, Santa Catarina. Seria esse estado “o sul de lugar nenhum”? Ou seria essa a desterritorialidade do poeta?

MARCELO FROTA O sul de lugar nenhum é a busca que nos impele a seguir em frente. Como seres humanos somos eternos insatisfeitos e nada nem ninguém nos completa como seres tomados pela inquietude. Amo a Argentina. É um país que como o Brasil, passou por uma ditadura militar, por crises econômicas, pela miséria e pela falta de esperança no futuro, mas que como povo de garra e luta procura seu lugar ao sol. É um povo valente e que possui uma identidade cultural riquíssima. Confesso que sou um apaixonado pela Argentina. A música, a literatura, o cinema de altíssima qualidade me encantam. Ricardo Darín é argentino e um dos meus atores favoritos. Sou um escritor sem terra. Nem brasileiro, nem gaúcho, nem argentino, nem francês, nem americano, embora esses lugares estejam na minha arte de alguma forma.

 

RITA QUEIROZ Em O sul de lugar nenhum, seu livro de poemas lançado recentemente, tem-se como título para o poema que abre o livro “O sul (de lugar nenhum)”. A partir da leitura desse poema, leitoras e leitores enveredam pelo universo do eu poético e já sentem as pistas das influências que marcam a tua poética: autores como Vinicius de Moraes, Charles Bukowski e músicos como Serge Gainsbourg estão aí presentes. De que forma eles influenciam a tua escrita?

MARCELO FROTA Minha escrita é feita de referências. É algo involuntário e que sempre fez parte de mim. O Sul (de lugar nenhum), de certa forma, dá o tom do livro. Entender e apreciar esse poema a meu ver é a chave para o livro todo. Ele mostra ao mesmo tempo quem sou como homem e como escritor, mas também mostra como são muitos leitores, pois o leitor também é um ser feito de referências. Talvez não exatamente de Bukowski ou Gainsbourg ou Bergman ou Woody Allen, mas sim de Alok ou Lana Del Rey ou Melody Gadot ou Robert Downey Jr. (que amo). Sou muito influenciado pelo que gosto, seja no cinema, na música ou na literatura. Claro que nem todos os meus poemas, ou contos, têm referências da cultura pop, mas elas são uma constante no meu trabalho.

 

RITA QUEIROZ – Seguindo com o poema “O sul (de lugar nenhum)”, a cadência dada a alguns versos me é muito cara. Assim, temos: “Jane geme e cora e treme e goza e geme”, “Paredes e livros e discos e charutos”. Esse ritmo nos levaria ao sul de lugar nenhum?

MARCELO FROTA – Sim e não. O sul de lugar nenhum é a busca constante do homem por algo inalcançável, e, por ser inalcançável, é algo que nos impele a seguir em frente. Eu acredito que esse ritmo seja a influência da música na minha poesia, da mistura de língua inglesa com francesa, de deixar a pontuação totalmente correta de lado e de seguir, ainda que timidamente os passos de José Saramago, que nunca foi muito afeito às regras de pontuação, criando um ritmo quase hipnótico para sua obra.
Mas sim, ao sul de lugar nenhum pode ser ritmo. Pode ser um conjunto de referências, pode ser uma viagem astral.

 

RITA QUEIROZ – A poética de Marcelo Frota é de ebulição? É navalha na carne, rasgando sentimentos marginalizados?

MARCELO FROTA – Ela é? Não creio que eu esteja apto a defini-la. Eu sou a indefinição, a busca e a insatisfação. Desse conjunto vem a ebulição, o corte, os sentimentos marginalizados. Acredito que sentir seja algo em extinção. A maioria das pessoas ao nosso redor apenas existe. Sentir e ser não são uma preocupação quando mal se ganha para comer, quando se ganha para sobreviver e não para viver. Daí é que vem minha insatisfação, minha indignação e ouso dizer a ebulição dos meus versos.
Lembrei agora de uma frase de Che Guevara que me define como homem e escritor: Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros.” Desse tremer de indignação é que nasce minha obra.

 

RITA QUEIROZ – O último poema do livro intitula-se “O sonhar ao sul (de lugar nenhum)”. Neste, a voz do eu lírico e a voz do poeta se confundem. Faz-se presente Vinicius de Moraes, em versos como: “Sinto uma dor infinita / Por todas as mulheres / Que jamais amarei”. Sente-se aí, ambos embriagados pela realidade crua. Como é o teu processo para transformar isso em poesia?

MARCELO FROTA – Além do Vinicius, esse poema tem forte influência do Mario Quintana, especificamente com o poema “O Mapa”. Toda a estrutura de “O sonhar ao sul (de lugar nenhum)” é baseada em “O Mapa”. Realmente não sei dizer se existe um processo. O que existe é um objetivo, de através das palavras trazer sentimento e, no caso desse poema, fechar o livro com uma ideia. De alguma forma, “O Sonhar ao sul (de lugar nenhum)” é o resumo da busca que o livro todo propõe e como essa busca é constante e eterna, e só termina, quando morremos.

 

RITA QUEIROZ –  Para finalizar: é possível sonhar ao sul de lugar nenhum? É possível estar ao sul de lugar nenhum?

MARCELO FROTA – Sim, sonhar é possível. Assim como viver é possível, navegar é preciso. Sempre é possível sonhar e nos tempos sombrios em que vivemos, sonhar é viver, é se afastar do horror, da cultura de ódio, do fascismo político, da indiferença social. E sim, é possível estar ao sul de lugar nenhum ou ao norte de algum lugar. Nosso caminho somos nós que escolhemos.

 

Para finalizar, trazemos “O sonhar ao sul (de lugar nenhum)”

Esse é o encanto da noite
Um silêncio sempre a escutar
Uma voz sempre a calar

(Ainda que seja a minha voz)

Sinto uma dor infinita
Por todas as mulheres
Que jamais amarei

São tantas moças bonitas
Tantas peles macias
Que jamais tocarei e

Existe uma mulher idealizada
Uma musa angustiada, uma deusa melancólica
Que nem em sonhos sonhei

E bebo um uísque, uma garrafa
Nesse silêncio sempre a escutar
E ouço o gelo no copo e os sonhos.

(Que não ouso sonhar)

 

In: FROTA, Marcelo. O sul de lugar nenhum. Guaratinguetá-SP: Penalux, 2019. p.87.

 

 

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RITA QUEIROZ – Natural de Salvador, Bahia, Brasil. Professora universitária, filóloga (pesquisadora do manuscrito), poeta. Autora dos livros Confissões de Afrodite, O Canto da borboleta, Canibalismos (Penalux, 2019, 2018, 2017), Ciranda, cirandinha: vamos brincar com poesia? (Infantil) e Colheitas (Darda, 2019, 2018). Organizadora de coletâneas. Colunista na Revista Cultural Evidenciarte. Integrante de diversas antologias, no Brasil e no exterior, e dos coletivos “Confraria Poética Feminina”, “Mulherio das Letras” e “Coletivo de autoras de literatura infantil e infanto-juvenil da Bahia-CALIIB”.

 

 

 

 

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This Article Has 1 Comment
  1. Baltazar Reply

    Muito boa a entrevista.

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