ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Joaquim Maria Botelho

 

joaquim maria botelho - ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Joaquim Maria Botelho

 

 

FERNANDO – Seu primeiro conto Lá dentro, e o último, Lá fora, parecem ter uma certa organicidade tanto espacial, como temporal, algo que dá uma continuidade, e isto reflete no livro todo pela coerência, ao não uniformiza-lo, mas sim, torná-lo orgânico no sentido de um corpo único dotado de um padrão coeso na linguagem, e uma linha estética adotada pelos temas comuns entre urbano e rural. Fale disso.

JOAQUIM – Neste livro eu falo de dimensões contrastantes. São olhares de quem está dentro de situações e olhares de quem está fora, observando e tirando conclusões. Num tempo em que o mundo parece estar dividido entre grupos radicais, rosnando uns para os outros sem a moderação aristotélica de perceber as nuanças e atenuantes, busquei mostrar a vida, em várias dimensões de amor, perda, alegria, desgaste, esperança, jugo, fraternidade. Quanto à engenhosidade de fazer o livro ter uma narrativa circular, em que o último conto é a continuidade de uma mesma história, vista de lados opostos, devo dar crédito ao meu editor Marcelo Nocelli, um perspicaz observador e estudioso da literatura. Originalmente, eu havia disposto os contos “Lá dentro” e “Lá fora” em sequência. Aí esse editor fez essa sugestão de os separar, e funcionou lindamente.
A estética que adotei foi da simplicidade da linguagem. Narrar com naturalidade, como quem conversa ou reconta uma conversa. Falar de acontecimentos que envolvem pessoas em ambientes caseiros, cotidianos, na cidade, na roça, no Brasil ou fora. A organicidade está vinculada a esse estilo, porque eu não queria ensaio literário, mas vida.

 

FERNANDO – O lá dentro tanto pode situar o espaço da própria narrativa dentro de gêneros, pois me parece que você nunca se situa dentro de um só, vi ecos de uma orgânica romanesca no seu livro. Mas também uma interioridade por dentro dos personagens, como se você olhasse para eles, minuciosamente, em seus interiores. Queria que você falasse destes planos tanto do escopo de um gênero entre tamanhos de histórias\enredos, conto\novela\romance, como do plano físico e mental dos seus personagens.

JOAQUIM – A interioridade que você menciona é praticamente o moto do livro. Quis entrar na mente de pessoas para escavar sentimentos irrevelados ou mesmo escancarados. Medo, ciúme, ansiedade, essas angústias de todo dia que nos afligem. E emoções que nos tocam porque tangenciam a nossa própria existência e nossas próprias experiências. Cada conto perscruta almas, em situações plausíveis, reais ou a partir do real que imaginei, como digo na quase epígrafe que inseri na abertura do livro. Do ponto de vista da ambientação, os contos visitam lugares diferentes, tão distintos em sua geografia, mas tão próximos em termos de condição humana. A pessoa ama e sofre, de maneira semelhante, em qualquer lugar. Não se trata de generalizar, mas de verificar que, em essência, todos somos parte de um mesmo universo psicossocial. Não escolhi o tamanho – até porque não é o tamanho do texto que define o seu gênero. A história foi sendo contada e, os escritores e os leitores sabem disso, ao cabo a história vai se contando. A narrativa, por vezes, é tomada de nossas mãos de autor e segue um rumo que escolhe. Decerto que planejei, gestei cada conto, mas em alguns deles a narrativa se sobrepôs à minha intenção e ganhou vida. Então não é isso a literatura?
Gosto das narrativas curtas. Reconheço que alguns dos contos poderiam ser ampliados, mergulhando mais profundamente na análise e estudo do tempo, espaço e personagens, tendo núcleos acrescentados e assim ganhando corpo de romance ou de novela. Mas aprecio o impacto do conto curto, de final inesperado.

 

FERNANDO – Me chamou atenção a questão da animalidade em muitos contos. Inclusive, Vida cachorra, eu levei um susto bom em confundir as relações entre estágios de pertencimentos no humano e no animal. Como foi escrever este conto em especial?

JOAQUIM – O conto “Vida cachorra” começou de uma forma bastante despretensiosa, num ensaiozinho de texto inspirado numa cena que me animou – no sentido de anima, de alma, de chama interna. Comecei a contar a história sem revelar quem era o personagem, e no desenrolar percebi que podia guardar para o final a revelação espantosa de que não era, mas podia ser, uma criança. Gente é como bicho, às vezes; foge ou recolhe-se e lambe as feridas. E tem gente mal civilizada a ponto de execrar e massacrar os desvalidos. Tudo o que narro no conto está dentro de um turbilhão temporal que usei como recurso para envolver o leitor numa crítica metafórica das diferenças sociais. De resto, um fôlego que vibra na respiração do livro inteiro. Você observa bem as aparições de cabritos, lagartixas, cavalos, cada um desses animais compondo não apenas a relação física do ambiente, mas incorporando-se a costumes e comportamentos. Com o seu tanto de figurativo, de metafórico.

 

FERNANDO – O exílio estaria conectado em seus contos a que aspectos do mundo? Pois mesmo o homem e a mulher habitando sua região, há um forte sentimento de deslocar-se do ambiente que se encontram. Fale um pouco disso.

JOAQUIM – Não penso exatamente no deslocamento como exílio, a não ser num ou noutro conto. O que pretendi foi mostrar que muita gente é estrangeira em sua própria terra. O exílio moral é pior do que a migração forçada. Na minha opinião, antagonizar o diferente está menos vinculado a gênero, etnia, credo ou ideologia, e mais à pobreza. Meus personagens não se exilam ou são expulsos por serem LGBT+, negros, seguidores de religiões ou comunistas, mas porque são pobres. Esse é o defeito que a chamada civilização impõe a quem não teve oportunidades de escola e de crescimento. E esse é o incômodo que registro no livro todo: a indiferença, e até asco, de uma parcela socialmente dominante, por aqueles que não têm dinheiro.

 

FERNANDO – Queria que você falasse detidamente da linguagem do seu livro. Dos matizes que você encontra nas palavras para observar e descrever cenários\ personagens e universos.

JOAQUIM – Sou jornalista e filho de jornalistas. Testemunhei, em várias partes do Brasil e do mundo, grandes desastres e maldades, mas também participei de muitas alegrias. Em tudo, entendi que a palavra certa é fundamental para explicar a vida, a cosmogonia, a evolução, o entendimento. Escolhi escrever claramente e simplesmente, para ser compreendido – ensinamento que tive de minha mãe. Não quis grandiloquência nem exibir conhecimento. Não usei de malícia. Não me escondi atrás de frases oblíquas ou obscuras. Não relevei a dureza nem me envergonhei do que fosse amoroso. Mas tive mestres. Li e leio muito e sempre, de Poe a Graciliano, de Horácio Quiroga a John Steinbeck, de Raduan Nassar a Autran Dourado. E estudei Ezra Pound. Seu livro, “O ABC da literatura”, faz uma síntese extraordinária da produção poética, que pode ser adotada para qualquer gênero: sonoridade, imagética e pensamento. Respeitando o ritmo e a música da linguagem, defino o lugar e o tempo do personagem; cuidando do registro das imagens, estabeleço o espaço e a ambientação; e introduzindo pensamento crítico e analítico, ajudo a fazer compreender os movimentos que conduzem o homem para dentro ou para fora de seu lugar, de seu tempo e de si mesmo. O que meu livro contém, resulta de um repertório que me foi oferecido pelas boas leituras, pelo bom ambiente familiar e escolar, pela minha profissão e pela sensibilidade que tudo isso me deu.

 

 

 

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