Trecho do livro ‘Enterrando Gatos’, de Rafaela Tavares Kawasaki

 

Rafaela Tavares Kawasaki nasceu em Araçatuba em 1987. É formada em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Toledo, na mesma cidade. Ainda na condição de estudante, foi finalista do “Prêmio Santander Jovem Jornalista”, realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 2014. Cresceu no Japão, onde passou 12 anos e habitou diferentes regiões do arquipélago. Enterrando Gatos é seu primeiro livro.

 

capa enterrando gatos 200x300 - Trecho do livro ‘Enterrando Gatos’, de Rafaela Tavares Kawasaki

 

 

“Se deslizar o dedo pela superfície fria da porcelana não fosse tão bom, Marina não teria prolongado a caça a objetos para acariciar e esmagar. Na verdade, não teria começado. O elefante indiano foi o princípio sem o qual não haveria sequências. Era um bibelô pequeno em meio a uma fauna de miniaturas que decorava a sala da Tia Lia. Apesar do tamanho, devia ser um favorito. Ocupava uma posição de destaque na cômoda de madeira envelhecida. Foi o primeiro de uma coleção de objetos conquistados e destroçados.

Era inevitável esfregar o dedo no bibelô depois do contato inicial. As bochechas e a barriga tinham curvas lisas de porcelana, mas as orelhas e a manta cheia de arabescos em relevos raspavam de leve no dedo. O bibelô tinha uma frieza que contrastava com o mormaço da cidade. O toque refrescava, abria distâncias entre a circunferência da sala onde Marina se encontrava e as outras pessoas da casa.

Sentir o bibelô nas mãos a afastava até da lembrança recente uma tentativa escapar da cozinha sem ser percebida. Foi durante essa fuga que esbarrou na cômoda. Seus pés tocaram o carpete do corredor quase sem fazer barulho, em contraste com sua habitual caminhada forte de quem tem pressa, que tanto irritava a mãe. É muito feio uma mocinha pisar com tanta força, anda direito! A mãe sempre diz o que mocinhas devem ou não devem fazer – e geralmente elas fazem o oposto ao que Marina faz.

Ela fugia não da cozinha em si, mas das pessoas. Especialmente Tia Lia. Mas você já está comendo de novo, meu anjo? Olhe o apetite dessa menina, benzadeus. Dá uma controlada, lindinha. Daqui a pouco você não consegue mais entrar em casa, hein? Os outros adultos da cozinha soltavam risinhos nervosos afiados o suficiente para se entranhar nos poros, atingir o sangue que percorria o braço de Marina e esfriá-lo. Não era um frescor como o toque prazeroso da porcelana, era um arrepio. A fatia do bolo permaneceu no prato depois da primeira garfada.

Ninguém viu Marina quando ela tentou se esconder atrás da cômoda da sala, batendo o braço nas miniaturas. Ou quando seus dedos agarraram o elefante de porcelana antes que ele caísse no chão. Marina foi sua salvadora naquela hora, grande ironia. Uma força maior a impeliu a escondê-lo na bolsa até o fim daquela tarde de domingo. Era prazeroso apalpá-lo de vez em quando por baixo da mesa, sem ninguém notar. Em algum momento, a tia perceberia a ausência do pequeno elefante indiano, mas não enquanto Marina estava na casa. Ah, no entanto, ela tinha de sentir falta em algum momento. O elefante enfeitava tão bem a cômoda de madeira envelhecida. As marcas circulares de limpeza deixadas pelas quatro patas no meio de uma camada espessa de pó chamariam atenção mais tarde. Marina não as espanou. Era excitante deixar pistas.

Só Marina sabia onde estava a miniatura. Era seu segredo e ela brincava com ele. Os olhos dela foram os únicos naquela noite a ver o bibelô ser quebrado com golpes de uma bota ortopédica já aposentada.

Daqui a pouco você não consegue mais entrar em casa, hein? Paft. O sorriso torto da Tia Lia. Paft. E então, não era só a Tia Lia. A voz áspera da mãe quando ela proibia Marina de correr com as outras crianças. Paft. Mas isso lá é nota? É para isso que você me faz enfiar dinheiro naquela porcaria de escola? Paft. A andança por consultórios até encontrar um médico que aceitasse receitar o remédio para cabeça que Marina sabia que não precisava. Paft. O apartamento pequeno do padrasto onde você escuta todos os barulhos que não queria escutar porque os quartos são próximos e as paredes finas. Paft. Ser obrigada a morar lá, porque o pai diz que sente tanto a falta da sua menininha, mas desconversa quando ela insinua que queria passar mais tempo com ele. Paft. Os doces que Marina não podia comer, porque estava engordando ou porque sua pele ganhava mais espinhas. Paft. Senta que nem mocinha. Fecha essas pernas. Vadias é que fazem assim. Paft.

O pequeno elefante indiano foi reduzido a pó. Todos os “sim, senhora” que Marina dizia sem querer e todos os “nãos” que ouviu a contragosto também se dissolveram. Ninguém viu a destruição. Só Marina. A exclusividade era o que chamavam poder, ela soube, então. Era tão bom! Marina precisou reviver a sensação. O pequeno elefante indiano teve muitos sucessores.”

 

 

 

 

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