“Eu tenho um vaso de sonhos brotando na sacada da alma encharcada” – 4 poemas de Nic Cardeal

 

 

ANATOMIA

Pesquisadores descobriram que os ossos dos camaleões brilham no escuro
através da pele.
Os peixes têm ossos finos chamados espinhas.
As borboletas são revestidas por uma espécie de armadura que segura suas
asas.
Os ossos dos homens quebram fácil com o passar dos anos.

Camaleões mudam de cor.
Peixes mudam de águas.
Borboletas mudam de flor.
Homens mudam de ideia.

Os camaleões fazem coisas absurdas com os olhos.
Os peixes fazem coisas absurdas com as brânquias.
As borboletas fazem coisas absurdas com as asas.
Os homens fazem coisas absurdas com os homens.

Camaleões são solitários.
Peixes morrem pela boca.
Borboletas são lagartas a caminho do céu.
Pesquisadores não sabem por que os homens demoram tanto para ver com
o coração.

 

 

EXTINÇÃO

Somos pedra, somos sopro – e somos o próprio tempo.
Somos sempre – e somos por enquanto.
Estamos tardios.
Destruímos a madrugada.
Voltamos à escuridão dos dias.
As noites nos são lágrimas amargas.
Nossas mãos estão fracas.
Os caminhos não mais indicam promissores ventos.
Tempestades estão anunciadas.
Somos rasgos no horizonte.
Ambiguidades desmedidas.
Esquecemos as regras, as regas, as podas.
As flores na varanda estão secas.

Somos poeira – e somos ventanias.
Estamos confusos.
As barbáries estão nas ruas.
Estamos cegos ao longo, ao largo
não vemos a distância – nem perto.
Miopias de hipótese,
de pensamento,
e de entendimento.
As sementes no quintal já não querem o broto.

Somos perdas – e somos restos.
Estamos arredios.
Dispersos. Raivosos.
Destruímos a ternura.
Mergulhamos em varreduras,
corações hipotecados
por nenhum preço estabelecido.
As crianças, sem horizontes, estendem tristezas endurecidas.

 

 

CARDÍACAS

Já que não sei dizer
de outro modo
então eu escrevo
minhas insuficiências

(quem sabe,
n’algum dia eu caiba nos vazios
daquilo que
– eu não sei de nada
– eu só sinto muito)

 

 

C(ASAS)

Eu tenho c(asas) me habitando os olhos,
verdadeiras vilas com quintais por trás das retinas,
telhados que acolhem chuvas esparsas,
uns ventos, uns pássaros em descanso das asas,
chaminés exalando fumaças em busca de nuvens espessas.

Quisera pudesse trazer os meninos e meninas perdidos
a habitar minhas casas por trás das retinas,
que corressem livres, cantantes, felizes
– esses meninos e essas meninas –
entre o balanço das redes e o colher das amoras,
fazendo estrelas brilhantes nos céus dos meus olhos depois do poente…

Eu tenho paraísos secretos depois dos desertos dos meus pensamentos,
depois das costas, das omoplatas,
dos contornos das minhas estradas internas tão tortas,
passeios noturnos indo dar na janela da alma,
quem sabe ali o mundo estivesse sempre bonito
e eu pudesse esconder toda essa ‘minha gente’ a salvo.

Então nós faríamos festas nas vilas, nas casas, nas folhas, nos ventos,
e ‘os meus meninos e as minhas meninas’ seriam crianças felizes,
sem medos, sem tempo, sem susto, sem limbo,
amarelinhas desenhadas nas bordas, nas beiras,
no centro, nos cirros, nos nimbos,
cirandas e rodas e poesias e prosas,
risadas rosadas, espécies de esperanças eternas
em casas etéreas com tetos tão ternos,
deixando bem longe as tristezas do mundo concreto…

Eu tenho um vaso de sonhos brotando na sacada da alma encharcada
– depois da lama, além do lótus –
haverá de nos caber um respirar em amor
onde ‘meus meninos e minhas meninas’
sejam sementes e brotos e flores e frutos
de um deus mais decente.

 

 

Sou Nic Cardeal. Nasci numa cidade miúda de Santa Catarina, depois de um ovo partir-se ao meio, virando duas meninas idênticas de almas distintas. Comecei a escrever a partir da minha 11ª volta em torno do Sol, mas todo o dito era guardado, muito bem guardado em minha caixa de segredos. Depois de virar gente grande continuei escrevendo, colecionando cadernos e rascunhos. Andei por lugares diversos, contei estrelas, juntei pedrinhas (e livros) pelos caminhos. Estudei astronomia, parapsicologia e artes plásticas. Depois estudei Direito e, por necessidade ou por obra ‘alheia’, exerci atividade forense por 27 anos, respirando livros jurídicos por todo esse tempo.

Há três anos finalmente abri asas e abandonei aquele mundo, voltando para a minha casa de dentro e recuperando minhas origens na escrita poética. Hoje vivo entre livros, exercendo também o sagrado ofício de aprendiz de livreira. Confesso que sou desajeitada. Calada. Quase esquisita. Minha voz tem som de silêncios. Enquanto não consigo dizer-me muito, faço de conta que me faço em palavras. Por isso escrevo: meu manual de sobrevivência. Tenho um livro publicado ‘inda agorinha (‘Sede de céu’, editora Penalux, 2019), outro pronto para a metamorfose física, além de participações diversas em antologias e projetos coletivos. Já completei meio século e mais uns pingos de respiro, e eis que sigo nessa linha em novelo, a costurar palavras às vezes rasas, às vezes fundas, beirando ventos e tempestades tão fecundas, cerzindo textos a passos lentos, porque palavras em mim não são dadas a sangrias desatadas.
Meus escritos estão compilados na página do facebook: ‘Escrevo porque sou rascunho’.

Please follow and like us:
Be the first to comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial