Três poemas de Rafael de Oliveira Fernandes

 

 

PORTA-RETRATO

as cortinas verdes do quarto se uniam delicadamente
como copas de árvores,
não parecia um quarto.
e a meia-luz indicava outono,
um dia frio e calmo,
nada dava a entender que estávamos em um aposento fechado.

enquanto minha mãe agachada me abraçava,
apoiando suavemente a cabeça sobre meu corpo pequeno,
ela era a única
que mirava a câmera, por isso a impressão de que fala diretamente
comigo que olho para a foto agora, e a impressão de que não olho uma foto.

por isso a sensação de que aquela pessoa que está na foto,
ou no parque, não sei, não sou eu,
sequer é uma pessoa, mas algo como um coração de minha mãe
que está fora de seu corpo,
está em um lugar errado, por isso ela o protege com tanto cuidado.

um coração que está em um tempo errado,
pois o coração agora bate tão rápido, num tempo que eu então não conhecia
tão diferente do coração da fotografia!
(dos dois corações daquele instante em que a fotografia era apenas uma fotografia
e nada mais).

tudo na fotografia está fora do lugar embora pareça necessário,
irremediável e eterno.
por isso a sensação de que olho para um carro em fuga (de mim, da gente),
uma mãe e um filho apoiando o rosto no vidro de um carro se afastando,
(e não no vidro do porta-retrato), pessoas indo embora para sempre, embora para sempre
estejamos fugindo com o mesmo destino, eu e minha mãe dentro do mesmo carro.

 

 

BEATLES NO TOCA-FITAS

havia algo na música dos beatles,
algo de brisa na melodia
enquanto íamos em um carro muito quente
na estrada da praia.

pra mim os beatles cantavam
nas fitas antigas só no início das férias
como certos pássaros
que cantavam na descida da serra
depois não cantavam mais

e os beatles cantavam durante horas, nunca
se importavam com a plateia
que sempre dormia no banco de trás.

eu não falava nada de inglês
naquela época,
não entendia nada
do que os beatles diziam,

tudo o que eu sabia é que
aquelas músicas me fariam
ver o sol e o mar

 

 

FOTO EM PAREDES DE COURA, PORTUGAL

a vontade era pegar um avião
para estar nessa varanda
nessa cena com os primos e a avó numa foto
que parece um cartão-postal.

e todos nós escrevemos nela
rafaela escreve de lisboa, susana de angola
e eu do brasil como se escrevêssemos
no verso
de um cartão apesar do espaço virtual.

assim, parece que
estamos reunidos
em volta da varanda, numa casa desenhada
em um cartão, tudo tão calmo na foto que
o computador ficava preguiçoso,
demorava, quase desistia de desligar.

a vontade era pegar um avião para estar
nessa varanda,
na foto do computador,
nessa cena em que a conversa ia tão leve
e lembrava tanto a infância
que o único
avião que parecia caber era o de papel

 

 

Rafael de Oliveira Fernandes nasceu em 1981, em São Paulo.  É graduado em Direito pela USP.  Autor dos livros de poesia Menino no Telhado, 2011, editora 7letras, Cadernos de Espiral, 2014, editora 7letras e do romance Vista parcial do Tejo, 2018, editora Patuá.

 

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