Fernando Abreu, um poeta acima da lógica de metalinguagem, por Paulo Rodrigues

 

 
“poesia, salto ornamental numa piscina vazia, e quanto maior a queda, maior a glória”. (Fernando Abreu)
 
Recebi, no final de março, o livro Contra Todo Alegado Endurecimento do Coração, do Fernando Abreu. Foi publicado pela 7Letras e possui uma apresentação lindíssima feita (pela também poeta) Adriana Gama de Araújo que diz quase no final: “o poeta sabe que o custo da poesia é a própria vida e a comunicação com sua essência. Sabe do dilema de ir além da habilidade com as palavras”.
São trinta e seis poemas, revelando a cada página o sabor da vida. Tem o tempero do sonho, da aflição, da revolta, mas principalmente da ternura linguística. Não falta habilidade ao poeta, “vestido no jornalista e nas dores do cotidiano”. Há muito tempo acompanho o trabalho de Fernando Abreu. Observo as reflexões profundas da poesia. As perguntas, na beira do precipício, a ironia sutil dos seus versos.
No entanto, chamou-me a atenção a capacidade de discutir a poesia, ao construir a referida antologia. Tem uma sequência de poemas metalinguísticos, reveladores da capacidade de Abreu teorizar sobre os sustos que moram nas palavras, como podemos ver no trecho do poema: UMA POESIA PRODUZIDA PELA PROSA, na página 57:
[…]
tudo é possível em poesia, menos dizer alguma coisa
 
podem
chorar escondidos de si mesmos
fritar os amigos em alho & óleo
e palitar os dentes com ossos.
 
podem
correr em um campo incandescente
fustigados por anjos 7 demônios.
 
podem
abrir as vísceras dos críticos
e ler a cotação da bolsa literária.
 
podem
organizar recitais para si próprios
e gozar sobre o cadáver das palavras.
 
Não é silogismo simples. Quando o poeta amplia o olhar da poesia, mostrando a sua incapacidade de dizer. O grande silêncio, agregado, das revelações já bem dito pelo Ferreira Gullar, no livro Em Alguma parte Alguma, abre as portas do enunciado novo. Não dizer aqui é dizer mais. Mais atraente, mais insinuante.
O poema é um espaço de fala. Constrói uma cena narrativa extensa, depois de proibi-la. Transcender ao normalismo da linguagem é papel fundamental da poesia. Há mesmo uma relação dialógica entre a boca fechada e as palavras babando o chão do verbo.
Em POETA NA TV, página sessenta e um, Fernando Abreu parece falar justamente desse ser acima de todos os outros. É um manual de instrução, usando outro gênero textual, dedicado ao acadêmico Antonio Cícero:
[…]
grandes poetas
estarão sempre por aí
praticando sua magia
com pompa
ou descrição.
 
mas só em alguns
toda aparência
de grandeza
é descartável
senão descabida
(em vista do que está
por dentro).
É a receita da serenidade poética. Antonio Cícero tocou o nosso poeta em alguma entrevista, numa TV qualquer. Pouco importa a TV. O acontecimento está na poesia, nos gestos, na grandeza íntima.
A expressão “é descartável” ilumina o trecho citado. Logo, entendemos que a dimensão midiática não interessa ao reino das surpresas humanas. O lado de dentro atrai a luz divina. Usa a metalinguagem não apenas para destacar o próprio signo, mas tem a convicção plena do mestre de obra. Sabe acompanhar as etapas todas da construção da poesia.
Tenho certeza, Fernando Abreu comunga do pensamento de Albert Einstein: “ um raciocínio lógico pode me levar de A a B. A imaginação leva você a qualquer lugar”.
Encerro, tentando decifrar mais do metadiscurso desta obra instigante, porque não podemos endurecer o coração.
 
PAULO RODRIGUES – Professor de literatura, poeta, escritor e autor de O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux, 2018).
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