“Ainda vejo os olhos do Tempo” – Três poemas de Marianna Perna

 

 

A Feiticeira

Numa outra hora, vida
Distante
Que perdura pela areia
Reluz, me seduz
Ainda vejo os olhos do Tempo
Vermelhos, congelados.

Sal e mais sal.

Em natureza profunda
Lá, onde não há chão
Mas se pisa em raízes
Se reencontra a carne
De pura seda
Eterna, vasta
Em território escuro
E sem armadilhas.

Nas trevas, o amor brilha.

 

 

Um abismo entre os dois olhos

As fachadas me cobrem
listras & marcas

Para quê ser olhada?
ser tachada

três vezes louca
três vezes louca

Escorre…
Despovoada.

Cala a boca
Seca o mar
às pressas

Cicatriz na pele de atriz
Faz-se atroz em um grito tão feroz
a minha garganta.
E árido. Sem ninguém.

Caminhar aleijada
E livrar-se da eternidade
cavada para além

Pro Fundo
de um labirinto fatídico
Apavorante

Que se esconde nessas fachadas,
nessas medalhas.

Serão léguas submarinas
para vencer o tempo.

A minha voz não secará.

 

 

Da luta incansável pela gota de vida

eu bebi a sua lágrima
eu recriei nosso remédio
eu te entreguei os ossos
abri as portas do inferno.
(Fui devorada pelos cães)

esperei você ficar nua
e admitir o quanto me procurou
em cada rua
em cada esquina que dobrou
apesar de tanta dor
apesar da carne viva
apesar do medo que grita
apesar do mundo que
morto se anuncia

admitir

o quanto me conhecia
me via
me sentia viva
percorrendo as veias
e os caminhos mais áridos
dentro de seu pavor.

(Eu esperei o veneno se transformar em amor.)

Então, lentamente, deitei-me ao seu lado
para relembrar versos passados
e recriar o instante que

Ainda existe, apesar de tudo.

 

[[ Poemas publicados no livro A Cerimônia de Todas as Vozes parte do livro-disco autoral de poesia (Editora Urutau, 2018) e configura-se em espetáculo cênico-musical, com músicos em cena e ancorado na palavra poética como potência de revelar o mundo absurdo que nos circunda e oferecer uma experiência de contemplação poética. Esta vai além da palavra escrita, transbordando-se em um estado poético criado através da junção do som, da palavra, do corpo em dança e performance e de projeções audiovisuais e músicos ao vivo.

 

 
Marianna Perna é poeta, performer e historiadora da música. Lançou seu primeiro trabalho solo autoral, “A Cerimônia de Todas as Vozes” – livro-disco de poesia e também uma peça de dança-performance cênica, estreados em Maio de 2018 pela editora Urutau, em parceria com o selo Klaus Haus Studio. 
Vem se apresentando e participando de eventos tanto com seu trabalho autoral como difundindo a obra de poetas mulheres de várias épocas, além da história das mulheres/feminismo, desdobramentos de suas pesquisas artísticas e acadêmicas,  e enquanto membro do núcleo de estudos e atos poéticos Contrafaccionistas.

 

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