“compro a narrativa embalada em papel de presente grego” – 3 poemas de Marcus Vinicius

 

 

Poeta [do livro O cacto não cresceu, Moinhos, 2018]

um dia serei poeta
falarei de arquipélagos desconhecidos
de cercas enfileiradas
da aproximação da chuva
do enigma dos pesadelos
da propriedade da terra
seu subsolo e geologia
indagarei juremas e cascudos
exigirei resposta de seus formatos
vou traduzir o som do fogo
queimado no dia de São Pedro
vou falar das crianças nessas fogueiras
das suas mutretas
de seus brados
quando falar de sons
não esquecerei da cor, filha ilegítima do nada
cores de carros no trânsito
de casas feitas de barro
da arte vernacular
tijolos grelhados
lembrarei das disposições dos objetos
da matéria cambiante do concreto
farei contudo o inventário dos cheiros
não calarei a respeito do carnaval das dores
o livro dos agouros, os surdos, os motores
e quando me debruçar em análises da velhice
recordarei os sábios populares
os ditos malditos
que pregavam linhas em bocas de sapos
farei tudo isso
escreverei no meu prontuário
tudo que fiz
tudo que não quis ter feito.

 

 

O verbo na sombra [do livro O cacto não cresceu, Moinhos, 2018]

na casa velha isolada
a lamparina da noite
testemunha da oralidade
é a luz das recordações
o monumento da saudade.

 

 

Jornal das Oito [do livro O cacto não cresceu, Moinhos, 2018]

eu assisto o noticiário
da tevê

compro a narrativa embalada em papel de presente grego
criada pouco antes do âncora ajustar sua gravata

quando o café estava quente
esfriando pouco a pouco
e o cigarro comprido
queimando e desaparecendo
sobre a mesa de reuniões

então ponho a narrativa
no bolso da camisa jeans new start
e a levo para passear
digo: ali é o jardim público e lá o banco vinte e quatro
horas, duas quadras para frente você chegará nas vielas
antigas do rei Polaroid

aponto pessoas ocupadas
encenando mil movimentos
elas passam distraídas
atormentadas
folheando canhotos e recibos
bancários

por um instante ameaço deixar
minha narrativa adotada

órfã de mim
talvez entregá-la na banca de jornais
com outras narrativas

quero quem sabe
descartá-la em qualquer caixa
enferrujada
com nome correio

então digo a ela alguma bobagem
you are so silly so cute my little dream

sempre estará comigo
deitada e rolando no nosso tapete

eu a recitando
ela me absorvendo
os dois juntos até amanhã.

 

 

Marcus Vinicius nasceu em 1988, na cidade de Juazeiro, Bahia. Publicou os livros de poesia O cacto não cresceu, editora Moinhos (2018), e ontem estive cálido, editora Urutau (2018). Tem poemas publicados em revistas eletrônicas, tais como Enfermaria 6, Ruído Manifesto, Subversa e Gueto. Compartilha seus poemas e escritos no site poesiademarcus.home.blog. É professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco e cursa o doutorado em História, na UFPE. Atualmente mora em Recife.

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