“Os meninos jogados na calçada não me tocam mais” – conto de Marcelo da Silva Antunes

Os meninos jogados na calçada não me tocam mais

 

Da casa pro trabalho, passo por vários. Não os culpo, mas não sinto culpa. Aliás, parei de tentar consertar o mundo. Nas sextas desço pela rua augusta pra pegar o ônibus e voltar pra casa, tomo uma cerveja com os amigos, entro em puteiros ou baladas e assim vou tocando a vida.

Em uma sexta-feira dessas, vi dois meninos ali no centro, parte velha, apesar de que todo centro é luxo pra quem não mora nele, se fosse falar sobre gentrificação era outra história.

Meninos com idades para serem meus filhos, ou filhos de qualquer um, meninos sem camisa, sem tênis, contam só com o shorts pra se proteger,
estou habituado com essa cena, mas alguma coisa prendeu minha atenção
naqueles dois, o olhar dos meninos não era de fraqueza, nem de desânimo.

Eles não se intimidavam com a playboyzada descendo a rua e seguiram sem
camisa no meio das pessoas, não sentem frio na noite paulistana. Pego o
ônibus e eles surgem algumas ruas mais pra baixo. Sinal vermelho. Eles se
aproximam da janela aberta. O vidro escancarado, o maiorzinho cochicha e faz pezinho, o menor sobe.

Tocava Racionais do lado de fora, ninguém na calçada pra ver os meninos, eu de dentro ganhei a fita.

Ninguém do ônibus ganhou a fita.

A moça de fone parecia em outro mundo, nem reparou nos meninos, nem
ouviu Racionais, nem que eles estavam descalços e sem camisa. Eu já tinha
entendido a cena dos meninos.

Subiram na altura do vidro e tentaram puxar o celular da moça.

A mãozinha do menino de cima puxava o celular, o de baixo me olha nos olhos, dessa vez não tem coragem, sinto o medo deles.

Não tenho vontade de avisar a moça, nem grito quando a mão já entra pelo
vidro, só olho, só consigo olhar nos olhos do menino de baixo.

Alguns passageiros gritam: moça olha o celular – ela não ouve. Os meninos
escorregam, saem correndo pelas ruas com o celular. Ela fica sem reação. O
cobrador adverte: isso tá acontecendo direto, esse filhos da puta, mas não
pode prender, né?

Eu de canto de boca dou uma risada.

 

 

Marcelo da Silva Antunes nasceu em São Paulo, no dia 13 de junho de 1992, dia de Santo Antônio e de Exu. É Autor de VIVAVACA (2017), SP: Sem Patuá (2018) e Outros Cortes (2019).
Editor do selo literário Borboleta Azul, agitador cultural e oficineiro de escrita criativa.

É poeta nas horas cheias.

Instagram: marcelodasilvaantunes_poeta
Facebook: Marcelo da Silva Antunes

 

 

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