“Caíram as máscaras e dançam nus” 4 poemas de André Giusti

 

 

Born in the 60’s

Os caras escrotos da minha geração
cortam a cidade em suas motos
retrô moderninhas esporrentas
mais caras que um apartamento
se achando garotões
do tipão rebeldinho
on the road
sem destino
born to be wild
posando de
sem regras e anticonvencionais.
Moto é liberdade!Tatuaram a frase
Desde que a liberdade seja a deles
para os iguais a eles
nada de liberdade
a quem seja diferente
a quem seja anticonvencionalmente
contrário às convenções
dos escrotos da minha geração.
Cor diferente
classe diferente
e quem beija dá a mão deita diferente deles
não passam no crivo de liberdade
dos escrotos
da minha geração,
nada nem ninguém que não seja rebeldemente
adequado à rebeldia adequada deles.
Os escrotos da minha geração cantavam
‘somos os filhos da revolução’
leram Marcelo Rubens Paiva
souberam inglês com as letras do Bono
estavam na Candelária em 84,
mas era prapegar mulherzinha
descolar um béqui,
agora se vê que era pra isso.
Os escrotos da minha geração
tinham um colega que o tio sumiu na caçapa da Veraneio
namorada com um irmão mais velho
que enlouqueceu nos porões
e um professor bacana de história
que ficou10 anos fora do país.
Mereceram, né? Foi um mal necessário
capaz de dizerem hoje em dia
os escrotos da minha geração
perguntando o que fazer agora com os discos do Pink Floyd,
sonhando ter uma arma no porta-luvas
e estourar os miolos do primeiro
que entrar na frente do seu jipão inglês.
2018

 

 

2018: sonolência blues

As moças e suas chapinhas
Seus shakes
De ilusórias dietas
Suas calorias perdidas
Na imbecilidade das academias
Recuperadas na orgia das sobremesas
(me dão sono me dão me dão sono).
Os homens
De terno
E cabelo lambido com glicerina
Seus gaps seus starts
Suas benchmarks
(me dão sono me dão sono me dão sono).
Os que imitam caras e bocas e bicos
Do humorista reaça
Que faz da humilhação piada
Difundindo preconceito
Em modo diversão,
Os que repetem trejeitos
De risos olhares de lado
Do gay de sucesso da novela da noite
Que é só cópia de outro da novela retrasada
De fórmula surrada
Do sucesso da década passada
ou
do cinema nacional de receita comercial
de sala cheia e público pasteurizado
(me dão sono me dão sono me dão sono).
Os homens maduros
Grisalhos de próstata crescente
E suas telas de led
Seus canais de esporte
Suas latinhas no freezer
Suas porções de maminha
Picanha linguiça
Seu ronco de porcos
Seu vômito solitário
No deserto dos domingos
Suas vidas inúteis
Sem quê nem porquê
Às segundas-feiras
(me dão sono me dão sono me dão sono).
Os rapazes de 30
Que moram com os pais
E suas pálidas namoradas
depiladas
Lisinhas limpinhas
Xoxotinhas de bebê
E que também moram com os pais.
Os rapazes de 30
E suas namoradas
Conectados ausentes
Andando pela calçada
Nas nuvens da Apple
E em volta o mundo se fodendo
Sem saber gosto do croissant
com amêndoa da malásia
Da padaria gourmet
(me dão sono me dão sono me dão sono).
Os rapazes de topete
Nuca raspada
E pontiagudas barbas de lenhador
fraudando masculinidade
De perto enganosa,
Ah, os rapazes modernos
E suas camisetas novinhas
Do Chelsea do Barça do Bayern
Sua ciência tediosa e monocórdica
Sobre cerveja artesanal
Seus combos de baldes imensos
De pipoca fedida
Na sessão dos filmes de super-heróis
(me dão sono me dão sono me dão sono).
As boas pessoas brancas
Com seus belos jipes e suvs
Com adesivo da Apple
Do S do Senna
E seus filhos brancos
De cabelo bom
E péssimos modos
Seus bons colégios
Preparatórios pro PAS pro ENEM
e nem aí pra incivilidade
de deixar bandeja
e comida pela metade
na mesa da praça de alimentação:
ah, mas é com boa intenção
é pra manter o emprego
do preto do nordestino pisado
que com esse salário e sem estudo
não vão a lugar nenhum.
Me dão sono me dão sono me dão sono
Vontade de um dormir profundo
Pra acordar ainda mais puto
E lhes dizer um sonoro
afiado e pontiagudo
Vão se foder!

 

 

Messias
*
Caíram as máscaras dos poetas
dos cronistas
caíram as máscaras
dos cristãos
dos católicos
espíritas
dos budistas.
Caíram as máscaras dos propagadores
de correntes de bom dia viva com alegria!!!!!
Dos ecológicos
dos terapêuticos
dos plantadores de sementinhas e hortinhas
no parapeito do ap
caíram as máscaras também.
Estão nus os veganos
os vegetarianos
os preocupados com a mobilidade urbana.
Caíram as máscaras e dançam nus
os simpáticos vizinhos
os doces velhinhos
e os antigos conhecidos
que a gente achava tão namastê.
Pra você ver
estão dançando nus
sem máscaras
debochando de nós
os tios os primos
mostrando suas varizes roxas
suas estrias
num reinventado ritual de tirania.
Estão nus e até de irmãos
caíram as máscaras
sob nossos olhos
incrédulos surpreendidos.
Mas no anoitecer escuro
de 2ª feira cinza
não são a única novidade
os que tiraram as máscaras
os que dançam lúgubres
na umidade abafada dos calabouços:
É que podemos ver agora
piorados avivados
– vitoriosos –
e ainda mais nítidos
os vincos na testa as rugas de ódio
dos que sempre dançaram nus
mostrando a cara

 

 

Poema das igualdades

Eu estou do lado dos pobres
– os de matéria, não os de espírito –
estou do lado daqueles que o ranço
chama de pretos.
Também me irmano às putas,
e se por acaso for dividi-las
estratificá-las
saiba que ficarei
ao lado das mais baratas
das rampeiras
daquelas de pernas esquálidas
nuas na chuva
mostrando marcas
de renitentes doenças de pele

e cicatrizes de talhos 
de gilete navalha canivete
suturados com negligência.

Eu tô do lado das bichas
das lésbicas
destas e daquelas que adotam
os abandonados filhos bastardos
dos patrõezinhos
com a empregada violentada.
Estou do lado dos travecos
que nas noites anônimas
da alta classe média
realizam fantasias
dos senhores bem conceituados.
Estou do lado dos
nordestinos mirrados
que vivem onde o país nunca
enxergou a si mesmo.
Eu estou do lado dos índios e mendigos
seviciados com álcool fogo gasolina
nas paradas de ônibus pra diversão
cruel dos “inocentes” bem nascidos.
Eu fico desse lado.
Se você não está com eles,
fique à vontade pra fingir
que não me conhece.
Vá além:
me bloqueie
desfaça a amizade,
aproveite e troque de calçada
antes de passar por mim.
Porque se você não está com eles,
nunca esteve comigo.

Do livro Os Filmes em que Morremos de Amor – Poesia & Prosa
Poética (Editora Patuá, 2016)

 

 

André Giusti nasceu em maio de 1968 no Rio de Janeiro e mora em Brasília desde a década de 90.
Entre contos, crônicas e poemas escreveu A Solidão do Livro Emprestado (contos), cuja segunda edição foi lançada recentemente pela Editora Penalux. Seu livro de estreia, Voando pela Noite (até de manhã), publicado em 1996 pela 7Letras, foi finalista do Jabuti no ano seguinte. Recentemente publicou A Maturidade Angustiada, também pela Penalux, e Os Filmes em que Morremos de Amor, seu primeiro livro de poemas, que saiu pela Patuá, em 2016.Atualmente trabalha em seu primeiro romance. Também é jornalista. Mantém site e blog em www.andregiusti.com.br

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