Fernando Andrade entrevista a escritora e dramaturga Paula Giannini

 

 

FERNANDO ANDRADE – Como diz o ditado popular não há muita receita para a vida, mas no seu livro de contos “Como a vida”, ele parece ser um delicioso contraponto às azedices da vida e do cotidiano. Fale disso.

PAULA GIANNINI – Sua pergunta me remeteu à fala de uma personagem de um trabalho meu que, de alguma forma, deságua e se origina no “Como a Vida”: “De Esperança, suor e farinha”. Neste, a personagem Nona diz — Não chora, que para tudo nessa vida tem um jeito. Para tudo. Só não para a morte… Mas olha, eu tenho para mim que nascer também é um tipo de morte. Então, tudo se resolve. Por que para a vida também não há de se ter um jeito…”

Então, eu penso que “Como a vida”, ao contrário de meu livro anterior “Pequenas Mortes Cotidianas” (Editora Oito e Meio 2017) – que trazia a morte no título, mas que falava de vida -, propõe ao leitor, de certa forma, que reflita sobre o caminho para o fim. Mais que isso, creio que, assim como está metaforicamente representado na capa de Luyse Costa, o livro convida quem o lê a percorrer, ainda que por breves instantes, às vezes doces, em outras nem tanto, o vislumbre de vidas que caminham, inexoravelmente, para o seu o seu final.

Assim, a vida nos engole, enquanto nos concede o privilégio da degustação, sempre breve, nos consumindo, devorados e devoradores, em uma festa de temperos e (di)sabores, que é o banquete de nossas próprias existências.

 

FERNANDO ANDRADE – Como foi usar cada receita para o tipo de narração e enredo que você bordava com tanto cuidado e esmero? Como foi  contrabalancear os ingredientes, e misturas, com a trama a ser narrada?

PAULA GIANNINI  – Há algum tempo venho percebendo, em um viés de meu trabalho, a recorrência de dois temas que, para mim, são de urgente importância em nosso mundo, em nosso país. Dar voz aos invisíveis e, quase como uma consequência disso, o modo como pensamos e tratamos o alimento (ou a falta deste) em nossa sociedade contemporânea.

Esse processo, quase natural, começou com a criação de contos-receita, um formato que vislumbrei um dia, ao olhar uma receita em um caderno de minha mãe, e que, desenvolvi a princípio, abordando memórias afetivas ligadas ao alimento, seu cheiro, textura, seu sabor. A experiência deu certo e os textos foram gradativamente tomando outras formas, enveredando por caminhos que se revelaram óbvios (ao menos para mim). O desperdício de comida em um mundo que sofre com a fome, a fome e o paradoxo das prioridades daqueles que poderiam fazer a diferença, até que, enfim, de alguma forma a fome e a invisibilidade de quem sofre com ela suplantou a doçura dos alimentos nos textos mais recentes.

Embora os contos sejam receitas e vice-versa, não houve em meu processo de criação um método formal ou pré-determinado seguindo regras. Ao começar o experimento, tudo que eu sabia é que queria falar de comida, ou melhor, queria falar de pessoas através das memórias afetivas ligadas ao sabor. Costumo brincar que, como taurina que sou, penso com o estômago… Percebo, porém, que todos somos povoados por lembranças despertadas por cheiros e sabores, os da infância, por exemplo. Assim, partindo da coleta de receitas de pessoas ao meu redor, construí contos conduzidos pelos gostos evocados pelos ingredientes ali utilizados.

Como agradecimento, alguns dos contos têm personagens que levam os nomes dos “donos” da receita original. Para minha grata surpresa, os sentimentos despertados em mim por estes sabores na construção dos textos, muitas vezes, tocaram em fatos que, aqueles que cederam as receitas me disseram ter semelhança a suas vidas. O que posso concluir com isso? O alimento, seu cheiro, o paladar e as sensações que estes nos trazem, são de alguma forma universais.

 

FERNANDO ANDRADE – O paladar seria tanto ao doce quanto ao salgado, seria uma conclusão ao conflito dado às histórias. Não se vê os personagens consumindo muito as receitas, é mais um ato criativo, quase como um recurso litúrgico de mediação com a paz de espírito dos personagens consigo mesmo. Por que não temos o resultado da oração, ela não seria um fim em si mesma?

PAULA GIANNINI  – Creio que a receita, em cada um dos contos a seu modo, funciona como um mapa, uma bússola a conduzir as tramas em uma espécie de caminho de círculos intermitentes.

Se por um lado, há um quê de ritualístico no sagrado ato de se preparar um alimento, por outro, a ação de consumi-los é para nós, os humanos, algo bem mais ligado ao “profano”. Comer é o que nos mantém vivos, comer é prazer, às vezes culpa, em outras, gula, desejo. E, em algumas ocasiões como é o caso da menina de “Pudim de laranja”, provar uma delícia pode ser um vislumbre, um convite para que se enverede em um novo mundo. Este mundo pode ser o sensorial, a viagem a uma memória, ou, como no caso da menina do pudim, a descoberta da possibilidade de uma nova vida, uma com esperança, livre de privações e com mais dignidade. Não deixa de ser um clichê na literatura, mas, na vida real, um prato de comida realmente pode salvar uma vida.

Assim, deixei o provar, o alimentar-se e o degustar nas tramas, para momentos chave, tratando o alimento como aquilo que ele realmente representa em cada um dos contos. Em “Pirulito de açúcar”, embora não prove, a protagonista sente os sabores através da sinestesia, em “Pudim de laranja”, a menina que sofre as privações da vida ao extremo de não saber sequer como se comunicar, tem seu momento de alumbramento ao experimentar do inusitado (e tão simples) doce, em “Sopa Paraguaia”, a refeição é oferecida como estratégica bandeira de paz, e por aí vai.

Por outro lado, pensando um pouco sobre a questão levantada, há também, aqui, a questão óbvia e natural da vida. A comida, embora sagrada (mesmo quando não é tratada assim), é (ou deveria ser) algo natural, comum a todos
nós, algo corriqueiro e cotidiano.

 

FERNANDO ANDRADE – Você diria que seus contos tem uma aproximação com a fábula? Não pela moral em si possivelmente embutida nas histórias, mas uma experiência visiva que nos leva aos arquétipos da construção do conto, experiência – conflito, prova, redenção ou não?

PAULA GIANNINI – Minha experiência com a prosa, como escritora, é relativamente recente. Meu trabalho, desde minha juventude, sempre esteve ligado à dramaturgia. “Como a vida – histórias e receitas nem sempre tão doces quanto as sobremesas” (Editora Patuá 2019) é meu segundo livro de prosa. Certamente, meus contos trazem muito dessa experiência dos palcos infantis e adultos, em um modo de contar histórias intimamente ligado à oralidade, à sonoridade, ao lúdico. Talvez, este viés possa soar fabuloso em um primeiro olhar, quem sabe em uma primeira camada. No entanto, é justamente na falta da redenção, na maioria dos casos, que o trabalho se distancia do gênero fábula. Em “Rabanada de panetone” (sem dar spoilers), por exemplo, o fim é realmente o final de tudo, o mesmo acontece com “Pão de queijo mineiro”, “Beiju” ou, mais uma vez “Pudim de laranja”, nos quais a solidão e o desterro é algo emblemático desses protagonistas invisíveis que tanto me chamam para criar. Nada salva estes personagens de suas sinas, o que há, certamente presente em todas as narrativas é a esperança a se insinuar como em um jogo de esconde-esconde, ou, em um ciclo perene (ou quase, já que tudo caminha para o seu fim).

No mais, gostaria de agradecer imensamente ao Fernando Sousa Andrade por este generoso convite para uma entrevista, e, aos meus queridos Raul Drewnick, que assina o prefácio e a orelha lindamente, além, claro, do Eduardo Lacerda e sua guerreira Editora Patuá.

No mais, um pouco mais, gostaria de convidar o leitor a experimentar um pouco de “Como a Vida – histórias e receitas nem sempre tão doces quanto as sobremesas”.

 

Link para compra do livro publicado pela Editora Patuá

https://bit.ly/2GRIEB5

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