FERNANDO ANDRADE – Suas imagens que parecem que tem quase um curta-metragem sempre nos oferecem pelos menos duas ou mais possibilidades de leitura, você começa o poema punk, desenvolve uma narrativa toda sombreada de ironias, não ditos, mal-ditos. E o fim é aquela cacetada na nuca ,com uma agulhada de forma como uma fisgada potente e irônica. Vejo tua poesia com laços de outras poetas como você cita no poema Erro de principiante, mas a escola que você adota me parece muito sua.
CAMILA FERRAZZANO – Minha formação poética é a leitura. Não me propus um estudo cartesiano sobre a poesia, inclusive, até este momento, uso a crase por pura premonição. O desejo pela artesania da palavra (e essa sou eu organizando minha trajetória em mentirinhas provisórias), veio do espanto na potência do encontro; eu era profundamente impactada por um poema e ficava estarrecida com o tipo de conversa que era possível travar com personalidades como Hilda, Clarice, Wislawa, Adélia, Plath, Fernando… Passei muito tempo dialogando com minhas mortas. (E depois conheci uns vivos que aposto serem tão grandiosos quanto). E belo dia (ou terrível dia, depende do ponto de vista), reli a série ‘Do Desejo” da Hilst e falei, cara, vou tentar isso aqui. E igual faço com as atrizes que admiro, comecei a imitar. E experimentava sem constrangimento as cadências, as estratégias, a voltagem… Essa brincadeira tão prepotente quanto despojada confeccionou, ao decorrer dos anos, algo que suspeito que seja o início de uma assinatura autoral. E nesta pesquisa – que arrisco dizer, só pode ser “bem sucedida” na medida em que não se sente intimidada pela fatal instabilidade – compreendo minha poesia enquanto um vício em transformar em estética aquilo que me comove. No teatro, você precisa de gente pra caralho pra fazer a coisa acontecer. E tem horas que eu tô urgente. Que eu preciso vazar esteticamente algo que tente dar conta do que me dói. Apesar de ter medo das frases peremptórias, encaro viver como um ato pontudamente melancólico que só é possível com boas dosagens de humor. E concomitante a isso, há uma filha da puta dentro de mim que não cala a boca. A poesia rebenta na pungência dela em se comunicar. Em ser amada. Em pinçar supostas desimportâncias e tentar encontrar ali a partícula de deus. Você vê que a prepotência continua regendo meus dedos. Mas não tem jeito, se eu não tiver fé, paro de escrever, paro de atuar… Mas como é que chegamos aqui mesmo?
FERNANDO ANDRADE – A questão biográfica me parece que perpassa todo seu livro. Mas ela deixa um pouco de ganhar peso pois você é uma portentosa estilista da linguagem, burila as palavras como poucos, agora, em atividade. Falar de si, parece fácil mas quando o processo todo está mimetizado por um turbilhão de vorazes afecções sobre afeto, sexualidade, desejo, parece que a questão da bio não fica tanto em primeiro plano. Fale disso.
CAMILA FERRAZZANO – Eu não acredito que é possível se esquivar do autobiográfico. Tudo é autobiográfico. Não no sentido factual do termo, do tipo “hoje acordei, fui no médico, menti sobre o jejum”… poema não é diário. O autobiográfico, para mim, não é diário. Mas tudo aquilo que escrevo, me perpassa. É humanamente impossível escrever sobre aquilo que não está em mim. E o que está em mim não se encerra nas experiências que testemunhei ocularmente. Não! A gente ouve coisas, pensa, lê, imagina… O mundo tá aí e a cabeça não para. Eu pego transporte público lotado todo dia. Um homem embriagado pedindo dinheiro começa a dizer que a voz gravada do metrô pertence a uma artista. Que deus esqueceu dele, mas que aquilo ali é uma artista. Eu escuto e componho uma infinidade de narrativas. E perspectivas sobre essas narrativas. E sobre o que essa anônima voz que ocasionalmente se mostrou a mim, revela sobre esse lugar que nós vivemos. Mas só é possível escrever quando se enquadra. Adélia Prado diz em algum momento “é em morte sexo e Deus/ que penso invariavelmente todo dia”. Apesar de considerar a tríade passível de pleonasmo, digo que eu também. Esse frame de realidade, para mim, é como no cinema; a câmera, no caso, são as palavras. Nossas obsessões são as várias fotografias que se tira de um mesmo objeto na tentativa de deter o fenômeno. Uma ação que em estado de sobriedade, se sabe fatalmente falha. Mesmo assim se escreve. E tanto os instrumentos quanto a coisa em si são escolhas que só existem na mesma medida em que eu me manifesto. Não é possível escapar de si mesmo. Eu nunca sou Ofélia, eu sou uma camila que experimenta uma ofélia. E nenhuma das duas é um sistema fechado. Tudo isso para dizer que Kafka escreveu em seu diário “Alemanha declarou guerra. Natação à tarde”. Supostamente uma frase de cunho pessoal, mas didática sobre o seu enfrentamento com o mundo. No exemplo do paciente que mente para o médico sobre seu jejum, se este confronto promover perguntas sobre essa loucura que é estar no mundo, então há matéria de poesia. Mas como escrevi isso bêbada, pode ser que eu não concorde comigo.
FERNANDO ANDRADE – Seus títulos são quase arremessos ao corpo do poema, eles atrelam força ao que você perpetra no poema. São quase parte constituinte do poema. Como você começa por eles ou o poema vem primeiro?
CAMILA FERRAZZANO – Os títulos são os momentos mais divertidos. E os mais difíceis também. Em geral se erguem da pergunta; a partir de que olhos quero que o leitor te encontre, meu amor? É uma maneira de inaugurar um mundo. E sabotá-lo, também. Por isso, a única constante é a de serem o que vem de primeiro ou último num poema.
FERNANDO ANDRADE – Vi uma questão do desejo atrelado a uma fisicalidade da liberdade não se prendendo à grilhões de machismo, de controle. Quase como uma “despossessão” do ego. Teus poemas arrebentam os núcleos operantes aqui até podendo falar dos coletivos de poesia, pois tua fala poética é sempre muito individual, pessoal. Fale disso.
CAMILA FERRAZZANO – A ideia é que só seja pessoal na medida em que deflagre a história íntima da humanidade. Não sei o que significa ser mulher, mas me interessa o comportamento que não se compromete em performar a feminilidade conforme o script – não por acaso – outorgado por homens. O feminismo me ajudou a elaborar novas perguntas. O que, no limite, me convidou a outras maneiras de estar no mundo. Com meu corpo e suas cicatrizes. Não creio que escreva especificamente para mulheres, mas gasto minhas horas vasculhando o mitológico ponto G.
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