Lorena Martins (Dom Pedrito-RS, 1982) é autora de água para viagem (7Letras, 2011). Atualmente vive na Estônia.
FERNANDO ANDRADE – Podemos dizer que nossas referências afetivas-culturais seriam baús-da-história-lastro de nossas memórias?
LORENA MARTINS – O título do livro, “corpo continente”, traz a ideia do corpo como o lugar das experiências, portanto também da memória pessoal. O corpo sendo o continente do ser e também ocupando o espaço, os lugares por onde passa – continentes. Parto de mim, do meu corpo, da minha experiência e da minha relação com o outro, para escrever, para olhar ao redor. Entretanto, o que escrevo não é necessariamente confessional. Muitos poemas deste livro são inspirados em fotografias, como as de Francesca Woodman; em pinturas, em filmes. A memória que ali construo também é inventada.
FERNANDO ANDRADE – Há certos conectivos que ligam seus processos constitutivos ( seu universo pessoal e histórico) com o mundo entorno. Há em ti no exercício da escrita uma sutileza de sugestionar os espaços em branco da escrita, já tua escrita é bastante lacunar. Percebo agora uma lacuna também no poeta Vitor Ramil, em suas músicas. Estas lacunas como você as faz para serem tão belas?
LORENA MARTINS – Obrigada pelas “lacunas serem tão belas”. Sobre você considerar a minha escrita lacunar, pode ser, é claro. O sugerir, o deixar espaços em branco, acho que pode ser uma busca da arte, um traço. Deixar um espaço para o outro preencher, para o seu interlocutor. Deixar algo não dito. Eu gosto muito do universo da impressão, da atmosfera – às vezes quero apenas descrever uma sensação, dela construir imagens. E isso não se encerra naquelas palavras.
FERNANDO ANDRADE – Como trabalhas a família nos seus poemas?
LORENA MARTINS – Família é um tema que me fascina. Porque me interessam as pessoas, as suas histórias, reais ou imaginadas. De onde vieram, o que está por trás de um olhar, de uma cicatriz, de um chapéu. Adoro histórias de famílias – contadas, escritas, filmadas. Adoro buscar retratos antigos em antiquários, imaginar que vida tiveram aquelas pessoas; observar gentes nas ruas, no ônibus. A família de onde viemos é como o lugar de onde viemos: não sai da gente. Há também a família ou as famílias que formamos. Família é terreno para todas as patologias e para todos os tipos de sentimentos, portanto é tema e realidade riquíssimos.
FERNANDO ANDRADE – Há um certo sentimento de vastidão\espaços no seu tempoema, mas ao mesmo tempo você trabalha a linguagem com muita concisão. Como você flexiona estas equivalências\ ambivalências?
LORENA MARTINS – Um amigo querido, o poeta Diego Grando, um dia me falou algo como “às vezes a gente amanhece com o eu lírico”. São dias lindos. No mais, poesia é trabalho. Buscar uma palavra por dias, meses; lapidar versos, trocar com amigos leitores, ler, reler, pensar. A concisão é importante para mim, cada vez mais. A linguagem que se produz nesse processo, no meu caso, é parte intuitiva. Eu leio muita coisa, muita poesia, eu vejo muita arte, eu me alimento de arte. E sobretudo de vida, vida no chão, vida diante dos olhos e do tempo.
Toda poesia é palavra no tempo.
Posso fazer poesia num instante
num piscar de olho
num triscar de dedo na tecla dura
de plástico mole em versos digitais
em semblantes cibernéticos
nessas sendas aleatórias
em aleivosias sintéticas
da concisão de palavras
em gestos factuais
fechadas em mim
abertas a ti.
* Talvez eu seja o único errado, em pensar que escrever poesia é vomitar sentimentos sem preocupação com estética ou “cinzelamento” excessivo dos versos? Pra mim, é muito pedantismo e preciosismo desta gente que busca um nobel em literatura. A mim, bastam meus olhos para dizerem que a minha poesia é apenas isso: poesia. Amém.