Fernando Andrade entrevista a poeta e escritora Patrícia Porto

pat - Fernando Andrade entrevista a poeta e escritora Patrícia Porto

 

 

FERNANDO ANDRADE – Qual é exata separação entre escrever tendo sua experiência biográfica como pano de fundo, e ter o texto final pronto, como uma narrativa distanciada dos aspectos do vivido, da experiência?

PATRICIA PORTONão existe uma exata separação, mas sim o desejo de. Quando a literatura é de testemunho e exílio, o distanciamento é causado pelo próprio rompimento ou trauma(s). É um processo sedimentado, sobretudo, no inconsciente, mesmo quando evocado à superfície. Então a experiência deixa de ser biográfica e passa a ser literária. É um trabalho estético literário com as reminiscências e quando o autor se debruça sobre essas experiências, lembrando aí os pré-socráticos, as águas são outras, mais ou menos turvas. O importante é não se tornar o afogado de suas memórias, mas para isso a literatura no campo da supra-realidade ajuda. Então temos as narrativas e as narradoras das memórias. Não se trata em nenhum momento de relatos de experiências, mas sim de um mergulho estético na anima, nos arquétipos, nas forças que um dia foram de opressão e ainda são. Para a escrita da mulher periférica, retirante, da mulher-macabéa atropelada na contramão, atrapalhando o sábado, é preciso construir um novo paradigma literário. A princípio a partir do seu lugar de fala para, depois, expandir para outros campos, tomando territórios (risos)… Lembrei do Michel de Certeau e a Invenção do Cotidiano. Porque é se apropriar de nossos bens culturais e dar voz à morta de fome, à atropelada por centenas de anos de exclusão na escrita… 

 

FERNANDO ANDRADE – Os sentimentos, as emoções, tanto a favor ou contra se encontram muito confirmados ou abalizados quando temos uma afirmação do que o narrado é fruto de vivência biográfica. Quando temos a entrada de uma linha que distancia o narrado pelo uso da ficção\personagem, o leitor ou o próprio autor tem ou terá uma relação mimética com o texto onde sua credibilidade factual, pode com a invenção\ fantasia ruir o pacto com a plausibilidade do real. Fale disso.

PATRÍCIA PORTOSe o poeta é um fingidor, o prosador também o é ao se aproximar desse “eu” múltiplo. Não há como validar o real na ficção se é literatura. É um jogo paradoxal em que o eu do outro se espelha num eu que é de fractais. É entrar numa câmara de espelhos. Afinal quem me olha hoje quando eu olho pra mim? É uma incessante busca ontológica que não se resolve, porque a literatura não está aqui para confirmar nada, mesmo a de testemunho. Ela aproxima, convoca para o desconhecido, o negado o excluído, o não visto na historiografia ou na arte literária, o que não foi valorizado e ainda não é – por ser considerado “literatura menor”, “literatura de mulher”, “literatura indígena”, “literatura de mulheres e homens negros”. Machado de Assis era negro. Mas sempre foi assim, porque há um selo de validade e quem dá este selo é a elite intelectual e acadêmica. E tudo que não é oficial e instituído causa ruído mesmo. Nós viemos pra causar ruído. Este é nosso papel na literatura. Incomodar o instituído.  Nós escrevemos sob outra perspectiva e ela por si só é uma quebra de pacto com o leitor e com tudo o que veio antes de nós, quando estávamos apartados da escrita. Nosso real era outro na escrita de outros. Estamos falando de realidades e da dialética entre elas. Quando eu escrevo, este “eu” traz muito de coletivo e está na contracorrente do próprio leitor que está adaptado aos gêneros constituídos, estes sim, balizados por um conjunto de verdades e interpretações legitimadas. Quando eu falo de corpo incomoda, quando eu falo “eu” incomoda porque é uma insurgência, é sempre um levante e ainda é um campo de participação política e estética marginalizado. Cabe a nós termos a ciência de nos preparar para as rejeições e defesas dos nossos projetos e vozes. É o esperado. E sim, nós já rompemos muitas barreiras. As mulheres negras quebraram o grande muro e nós viemos com elas. Mas o retrocesso bate outra vez… Tem saudades… Precisamos escrever para existir como autoras, narradoras e protagonistas (isso também incomoda) das nossas narrativas. É literariamente plausível acreditar nas nossas existências e aceitá-las. 

 

FERNANDO ANDRADE –  Qual? Princípio da escrita será adequado para a memória estar dentro do seu ambiente propício ao estímulo criativo e altero? Ou a ideia de fora\oclusão é a medida da escrita estar além do corpo, da vida, em outro meio?

PATRICIA PORTO Em Um sopro de vida nos diz Clarice Lispector: Não posso ficar olhando demais um objeto senão ele me deflagra. Mais misteriosa do que a alma é a matéria. Mais enigmática que o pensamento, é a “coisa”. A coisa que está às mãos milagrosamente concreta.  A “coisa literária” foi defendida por Clarice na materialidade de suas palavras, no trabalho de artífice da linguagem – objeto que se esmerila com o próprio corpo no corpo da linguagem. A “coisa literária” se faz pelo artesanato de pensamentos e palavras, pela poética de experiências com a arte que nos permite os estranhamentos, os despertares, os enigmas do conhecimento. Sendo assim a poética da narrativa memorialística (narrativas das memórias) nasce de uma ambiguidade de origem: é fonte e sede de rede-moinhos, pois repleta está de situações que, ao unir a arte à vida, cria um caleidoscópio humano, um caleidoscópio onde são constantemente recriados os sentidos da memória. Essa memória dinâmica, irrequieta e fluída que diz respeito à constituição da subjetividade num tempo volumoso. Por isso, sendo literatura não pode ser vista como um lugar distante, inacessível, destinado a poucos, mas sim como possibilidade de inter-relação com a linguagem, oportunidade de viver a memória pela voz da palavra, de expressar uma visão da existência pela composição da nossa história no mundo.

 

FERNANDO ANDRADE – O feminino entra no livro como uma forte fonte de ligação tanto com a escrita polimórfica com plural-sentidos, e como busca das questões da luta das identidades caladas e violentadas pelo machismo, pelo conservadorismo político. Há um antagonismo de gênero na escrita hoje?

PATRICIA PORTO Sempre houve antagonismo de gênero. Desde de Safo se formos procurar compor uma cartografia. Safo é necessária para entendermos a construção do pensamento no mundo, mas até hoje é estudada no campo da literatura. Há um antagonismo de gênero desde então, isso se quisermos colocar um marco na escrita. O que a restrição ao pensamento filosófico de Safo me desvela, embora isso venha mudando, é que desde do início da história da literatura nós fomos colocadas como uma categoria de menos valia, de menor potencial. Se pensarmos nos primórdios do romance burguês (romance ocidental, claro, porque o primeiro romance foi escrito no Japão, no século XI, por uma mulher: Murasaki Shikibu), a imagem do feminino e a voz feminina ainda eram determinadas pelo homem. O “eu lírico feminino” é romantizado até hoje.  Como é bonito um homem de alma feminina. E como pode ser “constrangedor” a mulher desejar falar de si mesma, do seu corpo, suas experiências, o que seja, na voz dela mesma ou de outras. Por que não te calas? Não, não vamos mais nos calar. É outra insurgência incômoda. Nós saímos de muitos confinamentos, casa e igreja principalmente, depois escola. No meu livro isto aparece o tempo todo, a negação à opressão desenhada para moças sensatas e de bom comportamento. E se une a estes confinamentos a uma ditadura militar, aos anos de chumbo. São várias camadas de repressão, de ausências na vida pública e política. A literatura faz parte desse estado de direitos negados e de subversão. Ela não é mundo à parte. Ela é língua e língua é política, ideológica sim. Vários contos são políticos nesse sentido, quando propõem um jogo de discursos que une a memória ao contexto geográfico e histórico. Mesmo que não se situe o ano exato, ficam claras as menções aos anos setenta, oitenta…  E atualmente, pensando no nosso atual poder constituído, isso nos diz que precisamos falar e escrever muito mais sobre essas temáticas. Quando mitos ressurgem: o mito da dependência, o mito da maternidade, da família tradicional, do modelo “bela, recatada e do lar”, e isto aparece em capas de revistas e mídias diversas… Tudo isso recria velhas-novas representações sociais de gênero. Fica claro no meu livro uma tomada de posição e uma contraposição a este modelo por dentro das microestruturas. Temos muito a dizer e com urgência.

 

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