“ficou ali com o olhar perdido no desenho de um nome” – Três poemas de Calí Boreaz

 

fortaleza

ver-te é o poema — a ver se te vê
por tempo que chegue para te ver
por trás dos olhos quando ver-te
for invisível
ver-te ouvir-te tocar-te imensa-me
há vento em amar-te e isso dispersa-me
sangue para um lado átomos para outro
sou o desencontro do meu corpo
clamando que o reúnas em maior beleza
obra de arte amar-te
na infinita-metragem dos turning points
que afortalezam o saber-me tua
ainda que
no buraquinho discreto que faço na noite
mas é nesse buraquinho que se acoita o ato-lua
de me debruçar sobre o mundo
e sobre o tempo — e me rir deles
porque te conheci

[ assistir videopoema]

 

 

toda varanda quer ser um navio

escrevo como quem se abrevia
às coisas:
vou ali e já volto
só uma saidinha
pra arejar, ar
no dia em que sumi no mundo
(nasci de parto mortal e mais
ninguém me viu)
ali comecei discreta a construir uma varanda
no planeta

abenluada
solidão

repente
a varanda do planeta
ficou escuramente maior
maior que o próprio planeta
não cabe na solidão
nem mesmo nestas
palavras verticais com que vou
vasculhando
oxigênio enquanto
empurro com todas
as fraquezas o portão
de parto que ainda me aparta
dos olhos que me escrevendo
me expandiram

abensomada
ausência

dia destes ainda sou capaz de zarpar, ar

com eles
numa distração do silêncio
na varanda desarvorada

enfim feita navio

 

 

 

efeito kahlo kuleshov

estou imóvel
suspeito que me tornei um quadro
com debrum de areia pequenas conchas
e pontas de cigarro
à minha beira está o mar em março
ele desatentamente cospe nos meus pés. e através
de mim desamarro o vendaval morse
/ não escutes. ainda estou imóvel
sobre mim-onde há uma constelação
de abutres como uma indecisão boiando
aos fundos de mim-quando há a ficção
citadina inacessível
entre o tempo da água e o destempero do asfalto
a destempo tento — ainda — criar poesia
/ ay llorona / olhos negros /
e crio silêncios. basaltos. silêncios
a fazerem sala às tuas perguntas
no horário nobre do despresente
faço um esforço — me recorto
dou um passo na via láctea
meus pés imprimindo a marca de água
e enquanto me arranco à imobilidade
/ as tuas perguntas /
a cidade se petrifica
basaltos. silêncios. solidões acústicas
presas na véspera — ou num dia advindo
a gastarem-se companhia
no horário nobre da vida

que é a fina presença da morte
agarro com força a escuridão
e dou mais um passo
o garoto de short azul na areia sentado
ficou ali com o olhar perdido no desenho de um nome
a cadeirante com o paninho de chão ao ar erguido
ficou ali com a mão esperando os 4 reais
o velho de 88 anos cansado demais
ficou ali com a expressão do primeiro estremecimento
do infarto
passo por todos passando neutra por mim mesma
vou direto à tua porta
enquanto junto pedaços

                 em morse

                                                                          amar-se

                                      em março

           um amor se

                                           maio                                                                                                                                                                                                         ainda for

                           tempo

 

estou batendo. batendo: atendo?

 

 

 

outono azul a sul capa integral - "ficou ali com o olhar perdido no desenho de um nome" - Três poemas de Calí Boreaz

poemas do livro outono azul a sul [2018], de calí boreaz, publicado em Portugal e no Brasil pela editora Urutau [editoraurutau.com.br], com ilustrações de Edgar Duvivier e António Martins-Ferreira e posfácio de João Almino.

 

 

calí boreaz
nasceu no outono, em Portugal. De origem parte do Ribatejo, parte da Beira Baixa, estudou Direito em Lisboa em meio às noites de fado, depois aventurou-se a leste, viveu um tempo em Bucareste, onde estudou Língua e Literatura Romena, e também Tradução Literária, até que atravessa o Atlântico rumo ao sul, no virar de 2009 para 2010, para viver no Rio de Janeiro, onde se entrega ao estudo e ao ofício do Teatro. Na literatura, traduziu do romeno os romances O regresso do hooligan [ed. ASA, Portugal], de Norman Manea, e Lisboa para sempre [ed. Thesaurus, Brasil], de Mihai Zamfir. Seu livro de estreia, outono azul a sul [ed. Urutau, dez.2018], com posfácio de João Almino e ilustrações de Edgar Duvivier e A. Martins-Ferreira, marca sua luso-brasilidade e tem uma extensão fotonarrativa no instagram @caliboreaz. Seus poemas foram expostos em forma de videopoemas no Hyderabad Literary Festival 2019, na Índia.
[ www.caliboreaz.com | instagram.com/caliboreaz ]

Please follow and like us:
Be the first to comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial