O peso do dinheiro – conto de Adriano B. Espíndola Santos

 

Nada é tão tacanho, pequeno, quanto Diego. Não me lembro de ter visto algo parecido em meus vinte e dois anos de vida. E o pior, tinha de suportar a sua presença desagradável por puro amor à minha irmã, Olga. Também não sei em que ponto falhei ao não a alertar do óbvio – até porque imaginei assim, o óbvio é o óbvio, e não precisa ser explicado; ser redundante, igual ao podre do meu cunhado.

Meus pais, no afã de entregá-la ao mundo, para fugir das línguas maldosas contra a mulher, em diminuí-la por estar “desamada”, para não “ficar pra titia”, suportaram o absurdo do casamento, penso eu – e via nos olhos deles o medo de estarem remediando um problema e, talvez, considerando carregar um ainda maior.

Enquanto morávamos eu, Olga, seu Luizão e dona Maria das Dores tudo corria na mais perfeita harmonia. E me estranhou muito a postura de pai ao aceitar o início do namoro. Não foram poucas as vezes que ouvi sair de sua boca: “Meus filhos (ou, meu filho), procurem alguém do seu nível, que tenha nossas condições, para não ficarem reféns de ninguém, principalmente pelo peso do dinheiro!”. Ele, acanhado, sabia, desde o começo, o buraco em que estava se metendo. Mas acho que a penúria falou mais alto, de poder dar um futuro melhor à filha, e a confiança no semelhante – pelo menos ele o considerava, de princípio, assim.

Apesar dos pesares, pai também dava espaço às opiniões; é um sujeito aberto, e costuma acreditar no que dizem. Não que isso seja de todo bom, porque o pobre já caiu em muita lorota. Mãe, coitada, por seu perfil apoucado desde sempre, mesmo com o nosso estímulo à sua independência, para dizer o que pensa, não conseguia muito além do que chorar quando algo de ruim acontecia. Hoje sei que não tinha forças para superar, por conta da depressão. A última lorota em que pai caiu foi de fazer uma permuta com o Zé das Beiras, o dono do maior galinheiro da região, que precisava urgentemente “completar uma venda”; entregou, primeiro, vinte galinhas em troca de ração para alimentar as outras. Ficou sem ver dinheiro nem ração. Mas arranjou um jeito de compensar a raiva; bem arranjado – isso aí fica para outra prosa.

A impaciência de pai, enfim, teve limite. No dia em que o barão chegou a casa vociferando, como se dono dela fosse, determinando que mãe servisse a ele um bom café e pão torrado com manteiga, e rasgando seda ao presidente; que ele, sim, ia dar um jeito no “país estropiado pela vagabundagem; e que gente pobre só servia para mamar das tetas do governo”, pai, homem bruto do campo – mas sensível, preciso dizer –, que nunca tinha presenciado aquilo, correu para acudir mãe. Ver mãe chorando, nos cantos da casa, sem entender, levou o pai a prestar mais atenção. Não quis me meter, e até senti o que viria; me contive, por um tempo. A mão de um homem que trabalha com a enxada, principalmente a de pai, com quarenta anos de quengo no sol, de domingo a domingo, deve pesar uns dez quilos.
Quando era pequeno, bastava pai olhar e levantar a mão dizendo o que tinha de fazer, que no ato ia. A única vez que me bateu, com um pedaço de cipó – não foi nem propriamente com a mão –, me rendeu duas semanas de cuidados intensos de mãe, ao pé da cama, da febre que tive, de quarenta graus. Foi aí que pai sentiu o peso de sua mão, do que seria capaz, e não iria mais despejar sua raiva, desse jeito, na família. De fato, era a sua forma de descontar as agonias que passamos, em nós mesmos – aí o erro. A fome, digo com propriedade, provoca uma série de alucinações; o homem pensa que é mais forte, que não tem ninguém que o supere, e vai à caça, como um leão atroz… Ouvido o desaforo do tacanho, pai partiu pra cima, com o talo de Juazeiro que trazia na mão, para pastorear os bichos. Nesse meio tempo, pensou na filha, na esposa, no amor que tinha pelos filhos, e lascou, não o talo, na verdade, a tora nas pernas do sujeito, só para deixá-lo manco, pelo menos. O peso da justiça foi sentido: “Que é isso, Luizão, só pedi um troço aí, que essa mulher prepara, sempre. Que eu saiba, estou na minha casa também!”. Foi aí que o homem emendou: “Caboclo, eu me arrependo desde o dia que nasci de ter dado a mão da minha filha a um sujeito como você! Lave a boca antes de falar da minha mulher, que, por sinal, aqui em casa não é mais sua sogra! Você pensa que seu dinheiro compra a nossa dignidade? Pois fique sabendo que, de hoje em diante, se minha filha topar, trago ela de volta pra cá, sem nenhum custo; ela não paga um palito. Tenho certeza que ela não vai trocar o amor verdadeiro por dinheiro, uma suposta boa vida. Pegue seus cacarecos e vá simbora daqui!”.

O doce de nossas vidas, a mulher criada a pão de ló, não podia ficar entregue às desventuras de um forasteiro, menino birrento de pai barão, que a usou como bibelô para sair bem nas fotos e festas da alta sociedade. Foi assim que Olga me confidenciou: “Irmão, na rua, para os fornecedores e clientes, sou a senhora Olga Dantas, muito bem considerada, inclusive por ele; em casa, sou sua criada, reles serviçal”. Papai, que não tinha estudo nem nada, se emocionava ao falar de Prestes, Marx, Lenin e Lula. Não é à toa que deu à sua filhinha, e a mim, os nomes de Luís Carlos e Olga, pelo exemplo de justiça que deram ao país. Pai ainda sonhou que Diego, o nome do embuste, tivesse alguma relação com Rivera. Desilusão. Essa mania de confiar nos outros…

 

 

Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

 

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This Article Has 5 Comments
  1. Gessica Reply

    excelente conto , parabéns Dr. Adriano !!!

  2. DIANA Reply

    Parabéns Adriano!

  3. Roberto Monteiro Reply

    Lula livro! Literatura e liberdade. Obrigado.

  4. João de Paula Reply

    Parabéns meu Irmão,que venham esse e muitos outros contos para alegrar nossa gente. Forte abraço.

  5. Adriano B. Espíndola Santos Reply

    Grato a todas e todos! Sigamos com a literatura viva! Roberto Monteiro, estou com você: “Literatura e liberdade!”.
    Afetuoso abraço!

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