Um romance de cartas pode ter um caráter orgânico entre suas partes, vozes que são sempre do ponto de vista de quem narra singulares, mas dentro da unidade do romance mantém a urdidura; o fio tátil coeso numa semelhança de escuta para leitor onde é um avesso, mas ao mesmo tempo o (con)verso do outro. Sempre penso no lado transgressor numa troca de correspondências.
Um estilo meio desbocado, um laivo travesso, de trocar farpas, ops, falas, entre uma ação que muitas vezes já transcorreu num passado remoto. Portanto, a carta é um exercício de rememoração, de lembranças, de como duas pessoas, aqui, e não necessariamente em relações-discussões de gêneros, pois tanto a missiva pode ser entre amantes, que não se veem há algum tempo, como dois amigos, irmãos que trocam cartas, por afinidade do laço, peito.
O que deve ser muito prazeroso do ponto de vista estético e narrativo é este permeio de vozes entre fala e escuta no processo de produzir um romance que não tem unicidade autoral. Mas é orgânico dentro de sua corporeidade. Aqui digo que o belo romance Combustão, Editora Penalux, escrito à quatro mãos por Cefas carvalho e Jeanne Araújo, tem sua linha ou círculo totalmente volteada violetada numa bela paleta de cores e nuances do que cada personagem age através de um filtro de emoções, os dois personagens Gregório e Hilda que trocam cartas e se relacionam carnalmente e afetivamente
Os ganchos entre um capítulo e outro estão totalmente engatilhados numa perpetuação de ações-volições entre a memória de cada personagem, claro, que tal prática, ou exercício de lembrança, estabelece trâmites ou pareceres que cunham gramáticas de gêneros. Hilda tem todo um afeto por Gregório e amor que poderia ter ido ou percorrido caminhos mais definitivos.
Mas ela não deixa de musicar sua voz feminina e de constância rotineira. Como Gregório dialoga com lado transverso da vida, com lado trágico dela e também estabelece um som ou cor com as musas, pois delas, não há só paz e harmonia, há perigo também em ouvir o parlato melodioso que vem de qualquer veio inspirante.
Assim, temos transgressões de ambos os lados, matizadas de citações musicais, literárias, como se os dois nos suspirassem ao ouvido deste leitor como seus leitores porvires, a arte deve ser um leão camaleônico que mata e come sua vida em parcos pedaços. Não adianta se represar-defesar, se previnir, viver uma vida banal e leviana. O sopro da escrita parece dizer Gregório e Hilda, é nefasto e abrasivo como fogo que arde sem se ver. A relação dialógica entre vida, bio, a arte, muitas vezes está tão entranhada em dor, sofrimentos, expurgos, que não é um ato, solene, escrever… Traz marcas-vergões.
Cefas constrói seu Gregório com a lente do ser que se permite a liberdade de usar ousar ir além do próprio corpo que lhe define. Esta ultrapassagem biológica que o corpo físico tolhe por ser falível, factível , o personagem através da experiência do amor e do sexo o explodirá em mil junções de poesia-música e barroquismo. Já Jeanne transmitirá em Hilda, as mil dualidades de uma ânima, mutante, tanto em dolores da casa, família e rotina, como “vilezas” de fêmea na fricção da potência do gozo pleno. Mas o que fica graças à Deus que na ficção não há arrependimentos, não há culpa cristã, remorsos, há sim uma vã libertação do grilhões dos miasmas do mal-dito, do interdito que ficou para atrás.
Fernando Andrade – escritor, poeta, parecerista, jornalista e crítico de literatura. Autor de 4 livros, o mais recente “Perpetuação da espécie” [Penalux, 2018]
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