Fernando Andrade entrevista a poeta Lisa Alves

 

 

FERNANDO ANDRADE– A lógica da ideia seria parecido como ideologia. Parece até um ideograma poético contendo letras semelhantes. Partindo de uma premissa que uma ideia contenha algo de singular e intransferível,  seu livro Arame Farpado é um belo constructo sobre identidades sob o fogo cerrado do medo, do fascismo, da violência mas você não perde a ternura nunca, há um brilho no seu olhar de ver o real com certa reflexão e sabedoria. Fale um pouco disso?

LISA ALVES – Talvez seja a dicotomia presente na minha poesia; ideias contraditórias que dão esse tom que você considera terno. A ternura sozinha é meio tola, não é?  Tem uma frase que é atribuída ao Che que define muito meu trabalho poético: Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.”. Se você observar dentro da frase existem duas ideias opostas: “endurecer” e “ternura”. Eu gosto muito do movimento da ternura, porém só a ternura não basta. Como escreveu o Roque Dalton: “agora a ternura não basta, provei o sabor da pólvora”. Não dá para deter armas com flores, isso só funciona nas fotografias, nas aberturas de telenovelas ou nas belas metáforas poéticas – beleza essa que não é muito típica no Arame Farpado. Igualmente não dá para cessar a fome com promessas de um amanhã. O amanhã para o faminto pode ser um caixão ou uma gaveta de indigente. Não tenho visões românticas e otimistas a respeito do mundo – minha poesia segue uma linha muito angustiante (no sentindo mais heideggeriano possível).  Além disso, essa fase da escrita do Arame Farpado fez parte de uma leitura bem dolorosa de universos próximos e distantes durante um período de dez anos. 

 

FERNANDO ANDRADE – Como foi montar um livro tão bem costurado em seus temas e linhas de ação, até as seções parecem colocadas de forma sequencial prioritariamente funcionais?

LISA ALVES – Sinceramente eu sinto muita desarmonia no Arame Farpado, justamente por ter poemas compostos em tempos muito diversos. Por outro lado, há uma amarração de sentido. As seções dão uma cobertura na semântica deles. Do Eu, por exemplo, é a primeira pessoa falando em todos os poemas – uma primeira pessoa que pode ser um Estado, populações ou uma voz silenciada. Dos territórios fala de colonização, invasão, espaços como corpo, Estado, lugares e não lugares. Todas as seis seções passaram por uma triagem de poemas pares.

 

FERNANDO ANDRADE – Seus poemas lidam com funções políticas e do corpo político mas buscando uma alteridade que não vemos muito na cognição política partidária. Para você o que difere um livro de poesia que fale de política de uma organização política?

LISA ALVES – É uma resposta que não caberia aqui de tão imensa, Fernando. As diferenças são enormes. Começando com o próprio sentido de organização. Para começar um livro de poesia mesmo com uma proposta política sempre será uma composição subjetiva. Meu livro surge de narrativas do cotidiano e não tem responsabilidade e nem compromisso com qualquer coisa. Bebo em fontes coletivas: tem poemas sobre Gaza, tem poemas sobre canibalismo, tem poemas sobre a minha tia que era fissurada com televisão, tem poemas sobre os monges incendiários suicidas e até mesmo sobre o meu cotidiano em uma relação monogâmica homoafetiva. São poemas “sobre algo ou alguém”, porém, passa pelo meu sentir, pelo meu filtro e obviamente há contaminações. Onde há contaminação, não há responsabilidade. E a arte contaminada é linda, pois prova que ainda não somos máquinas. Meu livro não propõe soluções e nem traça estratégias para melhorar qualquer coisa. Arame Farpado é uma leitura mais próxima de uma fotografia e cabe aos (as) leitores (as) interpretá-la. É isso.

 

FERNANDO ANDRADE – Quais as possíveis cercas (palavra com designação de através) que você quis dar ao título Arame farpado. Do concreto da liga física até seus meandros conotativos e simbólicos?

LISA ALVES – Arame Farpado é uma representação de barreiras materiais e imateriais e dentro desse campo de visão poética percebi drumondianamente que sempre há e haverá uma pedra no nosso caminho: o preconceito, a miséria, a insanidade, os traumas, a desigualdade, a colonização de corpos, mentes e territórios que são produtos da manutenção do poder. Arame Farpado é uma barreira angustiante e nem sempre tão óbvia. 

 

FERNANDO ANDRADE – Há uma ironia ligada à fúria quando você atravessa seus temas de confronto. Como foi usá-la em seu livro? Qual seria sua função? 

LISA ALVES – Eu sou bem irônica cotidianamente e sou fascinada pelo uso dessa ferramenta retórica na escrita. A polonesa Wislawa Szymborska fez genialmente ouso da ironia em sua poesia e por isso é uma das minhas grandes referências. Nossa diferença é que ela usava a ironia acompanhada do humor, algo que encontrei recentemente também no livro de poemas Coração à corda da Natalia Borges Polesso. No meu caso a ironia vem com o anticlímax e causa um mal-estar ou a tal da angústia heideggeriana que mencionei na primeira pergunta. A função talvez seja causar mal-estar mesmo.Considero um bom caminho fazer com que leitores(as) se sintam péssimos. Gosto da arte do desconforto. 

 

 

 

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Fernando Andrade, 50 anos, é jornalista, poeta, e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemoemetria , e Enclave ( poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018 o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie,  Editora Penalux.

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