DO ESPELHO
Essa mulher no espelho
tem o mesmo olhar
abotoado da menina que roubava
as sombrinhas de cogumelos
das árvores e dos pastos.
Esse olhar no espelho
parecem bolinhas de gude
na escada rolante,
olhos inconsequentes.
.
Essa mulher no espelho
tem gosto de hóstia
ao lembrar
dos dedos de menina
a lambuzar o próprio sexo.
Essa mulher é a mesma
que se atira nas raízes do seu colo
e se retira com nacos de barro
de obra inacabada.
Esse reflexo no espelho é o
reflexo de tantos outros reflexos.
Máscaras de pétalas
secas pelo tempo.
Coragem.
Pediu para o homem.
Essa mulher ainda sou eu?
O MOTIVO DO SILÊNCIO
Dendê a palavra.
É pimenta que anula.
Gravata do sentimento.
Para o amor, envergadura.
A palavra
tem pele dura,
sem âmago.
É entranha de
fagulha.
A palavra é bêbada,
branca de desejo.
Vândala armadura.
Prende em ecos
o ar azul do dialeto,
rouba mãos, grossas veias
esconde os dentes do afeto.
Invade a semântica do silêncio,
a metáfora dos amantes.
Subverte o não nascido
transverte
o que deve ser
polpa.
A palavra endireita
o que é certo torto.
Empobrece da alma o abismo.
Corpos nus
não conjugam verbos na cama.
BARRA GRANDE
Levei um ano para ver estrelas de novo.
Olhei muito para cima nesse intervalo,
mas elas se escondiam entre prédios com sobrenomes.
Tinha que voltar…
colecionar as conchas que o mar
não nos trouxe,
como uma antologia
de tudo
que não se pode repetir.
Carla Andrade Bonifácio Gomes é de Belo Horizonte de 77. Está em Brasília desde 2000, e atua como jornalista e poeta na capital. Tem quatro livros publicados: Caligrafia das Nuvens (Patuá, 2017), Conjugação de Pingos de Chuva (LGE), Artesanato de Perguntas (7Letras) e Voltagem (7letras). Inquieta e arteira, morou um tempo na Califórnia, onde tentou aprender até a surfar e falar inglês fluente. Herdou um grande talento da tradicional família mineira: a arte de boiar e atravessar pinguelas.
A poesia de Carla Andrade articula imagens que parecem brotar da fonte mais pura da poesia. Seus poemas raramente estão preocupados com um lastro de realidade, parecem estar muito mais submissos a uma vertiginosa – e difícil – sedução da imagem. Cada poema é um “tratado de perplexidades”, como ela mesma intitula um deles. “O real tem tardes de abismos / e os pássaros feridos em bandos / perdem-se dentro de mim”, diz o poema Doses do real, como se fosse estabelecido a cada momento uma cisão profunda entre a voz que fala no poema (o “mim”) e a realidade, cisão que exprime uma certa angústia, e provoca a desestruturacão de qualquer ideal de clareza na expressão.” ADALBERTO MÜLLER
“Carla Andrade pisa firme no chão da poesia, levitando. Quanto mais leio, mais gosto de seu rebuliço linguageiro. Mais me surpreende a fala crisálida, a habilidade com que desmonta e recria o seu sentido. / Os primeiros passos desta poeta mineira mostram que ela não joga com palavras à deriva. Antes, sai pulando marés e amarelinhas, voando pelos vendavais e abismos de um universo muito próprio, dona de asas e enlevos. / No desregramento com que ela tece os versos, há um lirismo enigmático provocando as pertinências. Vai deslocando as palavras, bricolando os sentidos (de quem a lê), divertida no jogo da poética, sábia e indiferente no que traduz da vida.” ANGÉLICA TORRES
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Gosto de imagens poéticas. Nesses poemas de Carla Andrade, são belíssimas.