“há essa gente que pernoita na impotência” – Três poemas de Katyuscia Carvalho

 

COSTURAS ARCAICAS

Onde o cós do mundo, um rasgo.
I r r e m e n d á v e l
.
.
Ela molamba à mesa posta.
.
Louças não disfarçam rachaduras, e retrincam
Aos roucos soluços do que não se disfarça
com lenços arcaicos
.
.
Descalça-se onde não lhe é mais chão.
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Chora e se desfaz, como quem refaz
as malas, pesadas demais por portarem pedras
Todas lançadas e relançadas, como se flores em lanças fossem
Como se floretes em flor
.
.
E que num dia como aquele juntou,
sozinha, em meio às feridas que herdou, sozinha.
.
.
.
Cuidado com a bondade dessa gente “inofensiva”:
são duplamente covardes quando trazem à tua dor
numa mão, um regador
na outra, ervas aromatizáveis, daninhas.
.
.
Sim, sente frio. Mas há de aprender a se proteger
do que é sol em terra de cegos.

 

 

ESTENDAL

o insustentável peso das asas
o varal do mundo
.
— onde o nu não pode o corpo?
.
.
toda ordem é rente ao chão
peso morto
.
.
quarando, um velho rasgo em vestes novas
dor de cortar com faca
.
.
prende, pende, despenca…
.
lágrima
que o sol não seca

 

 

DESTERRO

na borda dos mapas à beira
da vida aos fiascos
há essa gente que pernoita na impotência
.
entre entulhos de guerra
e muralhas de mar
.
o mundo fazendo fronteira com seu corpo,
com a pigmentação no tom da sua dor,
com a etnia na sua fala
.
.
são como pedras a bordo
que se atiram a si mesmas sem chão
que as queiram
.
.
que é quando tudo cala e é da cor
de lágrimas envelhecidas

 

 

 

Katyuscia Carvalho : Pernambucana de raízes e dialeto, nasceu com as águas de março de 1977.  Graduou-se em Letras. Lecionou intensamente enquanto viveu no Brasil.
Emigrou por amor.

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