O corpo
de dia
não é o mesmo
sob a lua:
as células pensantes
se agitam em ondas
e quebram-se
no quebra-mar.
É escuro, e ser corpo
é estar na beira do muro
e o mar te engolir,
desanuviando
libertando
a carne
dissolvendo
na queda infinita
pela terra que te toca,
pelo céu que te dissipa.
Torneira
Os cristais
nela incrustados
não poderiam
brilhar mais
do que a vida
dela despejada.
A forma
e o conteúdo
nela contidos
mergulham na vida
vinda de longe,
da terra que abarca o mar.
Toalha de banho
Sou feita 100% de algodão,
mas não sou roupa que se veste.
Posso abraçar o seu corpo,
mesmo não tendo braços e dedos.
Quanto à minha visão,
estou confinada a dois cômodos:
ou a gaveta do armário velho
ou o cubículo esbranquiçado do banheiro.
Por vezes me deparo comigo mesma,
minha textura refletida no espelho:
colorida ou sem graça,
às vezes florida ou desenhada,
mas sempre pronta para envolver
a sua carne com o meu corpo.
Sou eu que melhor te conheço,
até mesmo mais que seu pai ou sua mãe.
Eu conheço cada entranha sua,
passo por cada esquina e resvalo sobre seu sexo.
Eu sirvo para te esquentar e te ouvir
cantar aquela música chiclete
ou falar dos seus mais profundos
segredos – inclusive aqueles não pronunciados,
mas sempre em minha presença
prenunciados. Eu ouço os seus lamentos,
as injúrias e as (poucas) alegrias do dia
e enxugo as lágrimas que lhe escapam,
escorrem pelos seus ossos
e desembarcam em mim.
Soneto menor
Já não há mais Marílias,
Que dirá então de Dirceu?
Cai na enxuta armadilha
O que um dia fora meu?
E por que ainda me entristeço
Não confiante a procurar
Por um antigo e doce apreço
Já perdido em seu olhar?
Se foi com o tempo aquele tempo
E aquele todo encantamento.
E a esperar um gesto seu,
Ficam canção e amor contidos,
E os versos perdem seus sentidos
Sem Marília e sem Dirceu.
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