Por MARCELO ADIFA
Tratam, muitas vezes, o crítico como um desqualificado, um invejoso. Cingem sobre sua pele, sobre seu trabalho, um véu agourento do destrato, da arrogância causada por este saber-se, assim acham, inferior aos artistas por ele analisados. Fato que certos críticos gostam dessa imagem modorrenta de agentes do desmonte, outros desmancham-se em elogios fingidos aos seus amigos no que chamo de crítica de conveniência. Raros os críticos do silêncio, da análise tranquila e fluente. Fernando Andrade é destes, demonstrando também o saber escrever – assim como seus pares em críticas e escritas, Amador Ribeiro e Sérgio Tavares. Se a crítica é um exercício de introspecção, onde muitas vezes o ruminar desaforos é preciso, a poesia de Fernando trata de mastigar imagens perdidas faz muito no campo denso da memória. Aqueles filamentos só lembrados por quem deles se esqueceu por anos, distanciando-se das suas emoções para poder revisitá-las agora em versos.
Em A Perpetuação da Espécie, livro de poemas editado pela paulista Penalux, Andrade demonstra a sobriedade de quem observa o outro com a qualidade de um agente ativo da escrita, embora, retirando-se da ação para fazê-la em construção. O poeta não quer erigir enredos, incorpora a sua verve jornalística e relata fatos, oníricos ou precisos, em imagens e formas. Sua presença é importante, não ditando fatos, mas pontuando o cotidiano de poesia:
“E se seu pai e sua mãe
Fossem a dor do seu parto.
Se você os imaginasse a manhã
Com certa paz e brisa apenas.
Se aos dois sem parte
De gêneros fossem o primeiro raio de luz
A despontar entre dois cumes
Dividindo noite e dia e também”
Muitas vezes, poesia não é fazer, é observar, estar ali, olhos abertos:
“Passou os dias coletando números,
Vendo trens levar humanos
Fugidos da guerra Persa.
Mas antes, avise, vi o quadro de Velasques
Sendo olhado por algumas faixas etárias.”
É presente em Andrade a prática da subjetividade enquanto instrumento delineador de imagens. Está em Atavismo um dos melhores poemas do livro
“1
Seremos
Breves, homens
Com suas ironias Invadindo cercas
E por ali onde vês
Cercanias seremos
Leves ao roubar da sua casa
Toda mobília e diremos tão somente
Que foi um sequestro de ilhas.
2
Seremos breves, homens
Com tudo que o cercam
Casacos, sofás e poltronas
Atirados a quilômetro de distância.
Homens deglutem ânsias
E pormenores ascos.
Suas esposas sumiram,
Não perguntem porque o sol
Nasce às seis
E nem façam dos dentes: a faca
Uma ironia solícita para cães.
Somente estão a pastorear a paz.”
Fernando faz em seu livro, dividido em finas camadas, como se o tempo tivesse carne, se protegesse em sua pele invisível, um canto à perpetuação da sua espécie, das lembranças, das sensações, do sentir o abandono acompanhado do além mar logo à porta, batendo em desespero nas maravilhas do Rio de Janeiro. Vai construindo, pouco a tanto, no andar carregado de doçura, a sua própria história, pulando etapas, contando sensações como se não fossem suas, estancando o sofrimento como se o sangue nas palavras não fosse o seu. O poeta não finge, apenas dá beleza ao canto:
“Você que ontem
Me perguntou
Qual é seu nome?
Não está vendo?
Pois me chamam de menino”
O livro é curto, porém não é pequeno, ao contrário. E sua excelente poesia é complementada pela genialidade de Murilo Guerra em um dos projetos gráficos mais bonitos do ano dentre os livros de poemas. Primazia exercida pela Penalux em seus livros graças ao magnifíco trabalho dos seus editores e diretores, Tonho França e Wilson Gorj.
Nota: 4,5
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