“mulheres sem pernas e sem braços – sereias suburbanas” – Três poemas de Lisa Alves

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ONZE E MEIA

E diziam que era tão forte
e que venceria a embriaguez do velho
e a ingratidão dos filhos
e que enterraria a única filha
e só depois de cento e vinte anos
deitaria na terra pra finalmente descansar.

Diziam mas

abril te levou
e não é mais um clichê de poeta.
Abril foi devastador
e cruel fomos nós
que não acreditávamos
que uma mãe poderia morrer
ou que tivesse o direito
de nunca mais olhar na cara
desse planeta de patrões e empregados.

Até escrevi isso no poema do Pai
que fechou os olhos depois de um
mês exato do meu aniversário.
Não, eu não sou forte
como tenho escutado por aí,
na verdade sou bem covarde
e só não meto uma bala na cabeça
ou pulo de algum prédio sem grades
por medo de ter que recomeçar
tudo outra vez – como o aforismo 341 de Nietzsche.
Até do mar ando fugindo;
até do canto das sereias– não sei o que vem depois. Quem sabe?

Lembra das minhas visões?
Dos gritos das cinco da manhã?
Eu sabia que iria perder todos vocês
quando caminhei à esquerda
quando conheci a margem
ou quando saímos do enterro da vovó em 1990
e você me disse para guardar minhas lágrimas
pois a melancolia não pertencia aos jovens
e muito menos às crianças
e que minhas visões não passavam
de maldições hereditárias.

Eu te vi morta, Mãe!
Carreguei seu caixão
enquanto os homens
da nossa família me censuravam
em nome de seus velhos costumes:
“Mulher não leva caixão coisa nenhuma.”
Mas eu me agarrei em ti
e mataria mil se dali me tirassem.
E mataria. Eu juro!

Até hoje tenho aquelas visões.
Das cinco migrou para as três e trinta e três
mas é às onze e meia que espero o telefone tocar
e milagrosamente ouvir um
“ Li, tudo bem? A mãe tá com saudade.”
com aquele teu jeito mineira de ser.
Mas você não liga, Mãe!
E eu parei de atender qualquer ligação
para evitar que a linha ficasse ocupada.

Mas também não tenho muitas coisas pra te contar.
Além de dizer que você tinha razão a respeito de tudo
e que eu me enganei e vivo me enganando nessa história de amar
e que gente como a gente tem que ter prioridades
e que uma mãe pode morrer a qualquer momento
e que a gente vai junto – todo dia uma parte, uma célula e um pedaço do coração.

Amanhã vou desligar tudo e te deixar descansar em paz
mas só até as onze e meia – somente até as onze e meia.

 

 

O CANTO DA SEREIA MORTA

E eu era dessas, daquelas, de todas as formas
e colhia tempos e tentava congelá-los para
evitar que a vida fosse
                               tão rápida, tão mínima, tão flash.

Peguei a estrada,
inventei ternuras,
armei estragos
e sinto as falhas tornarem-se assombrações – é sempre um bate e volta
                                                                                                       (uma terceira de Newton).

                                                                           Beijei homens sem dentes,
                                                                         homens que chupam a pedra
                                                            e depois cospem na mão para calar o Diabo.

                                                                         Beijei mulheres mortas,
                                               mulheres sem pernas e sem braços – sereias suburbanas
                                                    (capazes de seduzirem a Lua e morrerem ao Sol).

Eu era a caminhante,
a caçadora de improbabilidades,
a especialista em vazios,
a montadora de quebra-cabeças sem peças.

Caminhei com os fracassados
e aprendi a passagem rápida para o desespero,
                                                        para o estopim.

Hoje não falo mais que treze palavras por dia,
sou das superstições, da reza brava, do tipo
q tece a própria corda para embalar o pescoço
depois de uma vida ruim.

 

 

QUE O MEU SONHO NUNCA ASSOMBRE VOCÊ

Do outro lado
sou a mulher
“de quatro paredes”
ao som de Billie Holiday.

Apenas uma “branquela” aborrecida
q sonha ter a cor da terra para ser mais inquilina,
q sonha ser Angela Davis.

Deito-me no solo e afundo nos dias frios.
                                               [dias de rabadas humanas.

A canção diz: “Little white flowers
                       Will never awaken you.”

Quando permanecemos estrangeiros
predomina uma fome de explorar
e não importa se oprimimos
o músculo do entregador de compras
ou o estômago podre de uma vespa morta.

A canção diz: “Soon there’ll be candles
                        And prayers that are said I know”

Gosto da música dos abortados,
da música dos malditos,
da música que canta o apego arruinado.

A canção diz: “Darling I hope
                       That my dream never haunted you”

Enquanto escrevo, você cai no sono.
O amor é a eterna espera do “Bom dia!”

 

 

Lisa Alves (1981, MG) é escritora e mora atualmente no Rio de Janeiro. Faz parte do conselho editorial da revista de poesia e arte contemporânea Mallarmargens, é coeditora Liberoamerica (Espanha) e resenha livros para a revista Incomunidade (Portugal). Tem textos publicados em diversas revistas, jornais e páginas literárias no Brasil, Espanha, Portugal, Moçambique e Estados Unidos. Tem poemas publicados em onze antologias lançadas no Brasil, Argentina, Uruguai, Espanha e País Basco. Lançou em 2015 o livro de poesia Arame Farpado (Lug Editora, RJ).

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This Article Has 1 Comment
  1. Maria Rita Oliveira de Sousa Reply

    Fui lida.

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