“a noite afogada na neblina ardida como brasa a estalar a prece” – Três poemas de Renan Reis

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3 remoagens de Solemar            

I

por último eram as suas ruas de terra e barro,
vadias, igual a vida que víamos nos córregos,
a acolher a mais mofada esperança.
havia vento e os meninos mesclavam-se às ruas,
àquilo que lento nas águas das poças
aguardava dia após dia o sol o matar.

era comum entre os meninos
juntarem-se à margem do rio,
compararem por horas a distância
deles com a outra margem,
com o barranco na outra margem.
após certo tempo, um com muita vida
saltava à outra margem e neste instante
o medo era como uma pedra atirada ao rio.
eram os meninos pedras atiradas ao rio.

no tempo que andar por suas ruas
chorar e saltar se misturavam,
a vida era um assombro. o sol se demorava
sobre o mato erguido na lama.
ninguém imaginava o tempo.

 

II

os meninos amavam pouco.
haviam árvores, rios suficientes.
também o sal do mar estava disponível.
toda forma de amar era dispensável.

a vida compunha-se de algumas certezas:
o cerol mais forte cortava, as pernas mais ágeis fugiam
e nunca ande descalço se os pés estiverem cortados,
lama, areia e cachorros culminam em doença.

vez ou outra os destemidos carregavam
suas feridas para as ruas, desafiavam leis.
antes que a tarde recolhesse as galinhas
estavam se coçando até os ossos.

havia prazer em coçar e admiravam
os caminhos tortuosos sobre a pele.
aprendiam que a vida também se compõe
de exceções, inchaços e que sempre piora à noite.

 

III

as noites chegavam acompanhadas
das sombras dos morcegos
que improvisavam no escuro
das copas das árvores à caça
de cucas às vezes goiabas
eles espantavam os olhos
das crianças e dos jovens
até os adultos aderiam
ao espetáculo noturno
a maioria assistia calada
os rasantes improváveis
para alguns era insuportável
suster a ânsia de tocar no bicho
de ver o bicho mais próximo
estes tomavam de varas
balançavam-nas com força
ouvia-se o zumbido de longe
é possível que os morcegos
também ouvissem aquele som
porque atraídos davam de cara
com as varas e espatifavam-se no chão
eram poucos a maldizer o ato
a maioria tinha uma sede escandalosa
aglomeravam-se em torno do corpo
do morcego morto como se ele
houvesse pousado para satisfazê-los
o voo tornara-se uma lembrança distraída
e alguns voltavam-se para a monotonia
da rua onde os cachorros ainda latiam

 

 

 

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seria um lar, não fosse a sua insistência
em desmentir as paredes, cindi-las com seus
olhos baixos de quem desgosta. e para evitar
repreensões, executa pantomimas gastas.

você sabe, com a certeza felina dos gatos
gordos de apartamentos, que isto seria um lar.
não fosse o seu hábito – péssimo – de furtar o calor
do sol a entrar pela janela da cozinha, e junto com o
cheiro do café, imprimir a isto o ar de um lar,
a aparência de um lar, o gosto de um.

você, realmente sabe, que esta estrutura, os ângulos
retos do teto, o pé direito baixo, as rachaduras – nem tão feias
– da cozinha, assim como o pó íntimo dos quadros,
e todos aqueles imãs escandalosos da geladeira, seriam um lar.

está clara a falta daquele sofá de vó, também
está óbvio o rombo que faz não estar suspenso,
na monotonia pura do branco, o relógio grande,
sempre cinco minutos adiantado. impossível negar
a falta do cacto, da samambaia, até das orquídeas…
mas a falta não impede que isto seja um lar. não impediria.

debaixo do batente você finge tremores e impossibilidades.
é a sua forma de gritar que isto não é um lar. está certo.
mesmo que se enumerem os nomes e as razões de cada prato,
das canecas (as inteiras e as quebradas) você se manterá firme
sob o batente, à espera do desmoronamento.

 

 

 

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apegados à fuligem chamamos um ao outro e o tempo
pedimos a chance de rever as folhas verdes colar as partes da fala
compor a distância que livra o torpor dos olhos clareando
a noite afogada na neblina ardida como brasa a estalar a prece
de quem clama vida aceitamos a impotência dos corpos regidos
pela mesma lei que as sequoias mas nossas almas pouco dispostas
sequer cumprimentam a chuva quando esta é tenra e quente

quando tocarmos com as mesmas mãos de antes não soarão
inaugurais as coisas amigas da semovente vida do silêncio
talvez erremos do mesmo modo com o mesmo medo
imaturos desafetos das ficções que as flores propõem
não hesitemos porém o tempo rompe a luz demorada
as águas já inverteram a sua corrente visitemos a morada
do grito e antes que a luz estilhace os olhos escavemos o escuro

destinadas a brilhar no ladrilho das nossas falas aceitamos
apenas agora a fuligem que a lembrança soprava as facas já
eram cegas todas as verduras nutriam a cor que lhes competem
as nódoas persistiam nos mesmos cantos da boca com monotonia
ouvir-se proferindo fonema por fonema de uma sentença sem fim
sabendo-se que se implorou ao tempo uma heresia põe-nos mansos
apegados à fuligem aceitamos um ou outro e todos os vestígios

 

 

 

Renan Reis. Nasceu em Mongaguá. Participou das antologias Curva de Rio e Carne de Carnaval, frutos do Curso Livre de Preparação do Escritor (CLIPE) da Casa das Rosas/SP, cursado em 2016. Tem textos publicados na página “Algo deu errado”, editada pela Ana Beatriz Domingues e Gustavo Hatagima e no site Literartéria, mantido pela Lilian Sais e Ricardo Terto.
  

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