VOO SOBRE O ABISMO – poemas de Luís Filipe Pereira

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1
[a boca desenha uma teia]
de líquidos
um trapézio desatado de cuspo
um farrapo de riso

queda

voo sobre o abismo
onde o corpo se rasura
a par com as ilhas de aranhas
da alvorada
do grito
das flores vivas que prendem
os ossos informes
crescidos na língua

 

 

2
[sob o peso do sol]
amarrota-se uma rosa por abrir
na fragmentação dos lábios

o poema tem nos braços
o aroma sonolento
uma linha esburacada
que é a margem de um pássaro
a organizar um sítio amordaçado
o vinho a cantar nos copos
os bêbedos abrindo a luz sobre a mesa
enleando em vão
as imagens dos deuses extintos
na cidade esma a delimitar os muros
esfacelados de vidros
reflexos sem contorno
no perímetro das nódoas dispersas
derramadas nos brotos
arrasados pela cinza
nos andaimes da língua
a sangue gravados na sede
a flutuar na garganta
entre sorrisos secos

dom de sombra
erva artificial audível nas periferias
do silêncio coçado do suor
correndo nas bocas diárias
paralelas
operárias

as janelas fechadas
como se não houvesse mãos sôfregas
como se não houvesse subúrbios
de cio na pele
ou motivos furiosos nas ancas da noite
no seu vermelho incoerente
para lá do negror da gasolina
e das palavras gastas
subtraídas às hastes das rosas altas

palavras apenas
veludo de vinho
onde os corpos se requebram
no redondo dos relógios
nos beirados da solidão

onde há tempo ainda
para escrever um SMS
de boa noite
em direcção a uma lâmpada
à luz falsa que a entretece
numa ilusão de convergência
a preparar o labirinto
onde cai o sono
vazio onde os corpos
resvalam
a súmula da devastação

 

 

3.
Para Flavio Caamaña

[Um aqueduto]
de tédio
a andarilhar ainda.

perguntas-me:
por que razão tanto te examinas
nas algemas da sombra?

chamas-me soturno.

digo-te:
que o meu olhar ocupa a extensão suficiente
para costurar na respiração da sombra
na sua locomoção sem memória
desnudada de sangue de muco de entranhas
as faúlhas da noite que precede a inevitável morte.

digo-te:
a sombra tem um sonho: a extinção.

como se vivesses afeiçoado à efígie do sol
e pudesses atravessar num aqueduto
o infinito sob a forma de uma combustão
em olhar que ateasses através de uma lupa
escarninhas-me as respostas:
eis o teu modo de fingir o esquecimento.

não me recordo se te digo:
nem o amor à claridade
ao remanso dos espelhos
é suficiente para frear a morte
por mais uterina que seja a luz que atravessa
a brevidade das águas
que lenta alaga os aquedutos.

 

 

 

Luís Filipe Pereira: nasceu em Lisboa, na década de 70. Licenciado e pós-graduado em Filosofia. Licenciado em Literatura Francesa. Pós-graduado em Criações Literárias Contemporâneas. Mestre em Teoria da Literatura. É autor de 3 livros de poesia: A Tela do Mundo (DG Edições, 2008- 4 edições); No Lugar da Pouca Farinha (Ed. Temas & Debates, Colecção Preto & Branco, 2016-2 edições) e Consoante as Estevas (Ed. Coisas de Ler, Colecção Clepsydra, 2018 – 2 edições). Tem diversas publicações nacionais e estrangeiras em polifónicos registos: poesia; conto; ensaio; recensões críticas, prefácios e posfácios. Distinguido com 1º prémio de Poesia (Câmara Municipal de Ovar) e 1º prémio de Conto (Concurso Novas Escritas Barata).

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