Três poemas de Alexandre Pilati

 

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Dicotomia

O corpo:
cápsula de angústia
em que o tempo ganha
forma.

A alma:
válvula de escape
em que o tempo foge
da forma.

E eu lá no meio, sem dialética, sem saber que diga ou faça!
Joelhos e sonhos no milho da dicotomia.
Corpo de castigo, dividido; alma fechada, a céu aberto.

 

 

Brasília, setembro, 2016

o abraço de sépia de certas manhãs
e setembro conduz as entrequadras
de baixo do eixo de baixo para o fim
profundo dos anos setenta, ipês incluídos.

o repouso forçado de companheiros e sonhos
e, naquele amarelo sem saída, há pedras;
naquelas flores de crepom, há segredos; como bois
raquíticos, árvores secas ruminam firmes e alheias.

e como é fraca a natureza desses pardais desesperados.
acordes ínfimos, sem força de hino, poema ou perdão.
entre o candango e o brasiliense abre-se um solo de infertilidade.
aprendemos a ser crosta grossa de árvore queimada. e reflorir?

amada pátria!, onde o tempo ferve, gorjeia, flerta e fica.
o morno não passar das horas enquanto
a vida passa, feito na música de ednardo.
“arrepare não”: tudo parece com morrer, com não ter crescido,com ter secado.

o tempo voltou ou o país está de pés descalços? a vida perdeu
a razão e o passado é um “pois não”? os olhos carecem de vento
para ver. sem ele, os olhos são velhos móveis diante do horizonte
cerrado pelos anos que retornam: o abraço de açame em nossa boca.

 

 

No meio do caminho

That monster, custom, who all sense doth eat
Hamlet

minha cidade, encaro outra vez em delírio,
louco e velho príncipe, tua carranca; para ti arrasto
estes quarenta anos e tento encantar-te debalde.

balbucio em tuas tesourinhas um protesto errado
ou o nome mãe. (minha mãe bonita morreu triste
entre teus corredores de engolir estrelas e passarinhos).

minha cidade, envelheci e vejo tuas curvas rijas
que já não são de utopia, que são agora as curvas
de um boxer que duro canta uma ária de Turandot.

eu sangro enquanto choras asfalto, cal e carros
e te desejo monumental, tortamente Diadorim –
macho na chuva, fêmea nas manhãs: ninguém durma!

estou velho no sertão, na maloca, estou velho
na rosácea estéril da pequena burguesia, num circo
cheio de pústulas e dívidas, de nódulos e de relatórios.

pouca luz vem, minha cidade, de teus entardeceres,
e apalpo-me às dezenove horas de Brasília: reconheço
rugas; não tenho mais a mesma idade de David Beckham.

te aceito como um pederasta, te aceito como um comunista,
te aceito como Charles Chaplin, te aceito como uma super
bactéria, como um surto, um golpe de cotovelo: te aceito.

nas feiras de falsidades, vendi as quinquilharias de
meus sonhos, entreguei os vinténs dos meus sorrisos e
o dinheiro comeu aquele cavalo que me levava de ti através.

encaixei-me em teus eixos, caixeiro incurioso que sou;
de lasso papel que sou, aceito o verão que oprime,
anseio a seca que sempre derroga as águas do Paranoá.

mas ainda há algumas garças e trabalhos de Oscar, ainda
há a paixão de Lúcio no crucifixo; mas ainda há
um chope com Chico e Nicola à espera no Beirute.

então, não te mando embora pois sei mais de mim
sei amar mais, sei beijar melhor, sei melhor
reconhecer os companheiros que ao meu lado brigam.

entre hábitos, fantasmas e demônios, escrevo ainda
nesta vereda cerrada da vida, escrevo-te ainda, minha
cidade, para dar veias de verdade ao meu descontrole;

e te juro: não deixarei o monstro me devorar os sentidos.

 

 

 

Alexandre Pilati (1976). Estreou na literatura com o volume de poemas sqs 120m2 com dce em 2004. No mesmo ano venceu o concurso de contos Machado de Assis do SESC – DF. Entre os anos de 2005 e 2006, foi editor, em parceria com o jornalista e escritor André Giusti, a Revista Digital de  literatura Messaginabotou. Em 2007, publicou o segundo livro de poemas, intitulado prafóra, pela Editora 7 Letras. Pela mesma editora, em 2015, publicou o terceiro livro de poemas chamado e outros nem tanto assimAutofonia é o título do seu quarto livro de poesia, que reúne textos escritos entre os anos de 2013 e 2016 e foi publicado em 2017 pela editora Penalux. Em 2018, mais uma vez em parceria com André Giusti, iniciou o projeto “Literatura face a face”, que consiste em rodas de conversa mensais com autoras e autores de Brasília. Publicou ainda os estudos literários intitulados A nação drummondiana – quatro estudos sobre a presença do Brasil na poesia de Carlos Drummond de Andrade (7Letras, 2009) e Poesia em sala de aula – subsídios para pensar a o lugar e a função da literatura em ambientes de ensino (Pontes, 2017). Desde 2010 mantém o sítio http://www.alexandrepilati.com para a divulgação do seu trabalho como escritor.

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