O relógio e a sua subjetividade
Por Jean Narciso Bispo Moura
“O despertador é um objeto abjeto.
Nele mora o Tempo. O Tempo não pode viver sem
nós, para não parar.”
Mário Quintana
“O interesse que tenho em acreditar numa coisa, não é a prova da existência dessa coisa”
Voltaire
O relógio tem um quê de simbolização do tempo. A vida é em si talhada pela temporalidade. O fenômeno viver indica prazo, duração, um findar, ainda que indeterminado. A vida contrasta com o eterno, ou seja, com o seu símbolo, no interior dele persiste a submissão dos viventes.
O eterno é indomesticável, está numa raia maior não alcançada pelo intelecto humano, podemos apenas abstraí-lo. O eterno existe apenas na consciência do ente efêmero e nas projeções objetivadas por ele. A natureza é, porque é, num linear existir sem estabelecer qualquer crivo de durabilidade. O termo eterno pode ser esvaziado numa queda de um gigantesco meteoro ou na extinção de nossa via láctea, fato improvável, mas aceitável no campo especulativo. Os elementos perpétuos (ideias e entes abstraídos) encerrarão nesta ótica o seu conceito de permanência ininterrupta.
O eterno está no intelecto do gênero humano, fora dele, não se inaugurou a clausura e a sanha pela procura sedenta pelo absoluto. O universo resigna-se em ser.
A classificação é necessidade humana, até certo ponto compreensiva, tentativa de dar sentido ao entorno, àquilo que é perceptivo pelo olhar e imaginação. As coisas, os seres e os fenômenos requerem explicação, sem isto não haveria o apaziguamento, ainda que provisório do espírito.
Neste processo de divagação inicial, elaborado por mim para apreender o título do livro de poesia de Thiago Scarlata, vi o tempo como uma invenção que traja, na individualidade, a nossa existência. O tempo existe para mim em quanto posso reproduzi-lo no emaranhado de outras existências: de coisas e seres. Vê-se na sentença de Scarlata uma sacada irônica, o titulo diz-nos “Quando não olhamos o relógio, ele faz o que quer do tempo”, propositadamente não foi construído para ser uma premissa verdadeira, se lida em outra perspectiva, ou seja, “Quando olhamos o relógio, ele não faz o que quer do tempo”, cria-se uma atmosfera sardônica e a certeza que nada podemos fazer neste embate.
O tempo nesta fotografia sabe como ninguém lançar na sarjeta os seus hermeneutas e recusa-se peremptoriamente a ser interpretado, ele assim como a natureza apenas é: desautorizando toda e qualquer subjetivação, pensada em uma angulação dogmática.
A invenção do relógio traz no seu dorso: retenção, controle e ideia de domesticação do tempo. Domínio improvável e inatingível por nós, entes efêmeros.
“Tempo, esse velho surdo e apressado/ que não mede a teia que tece/ desobriga grão a grão/ (sem qualquer objeção) / pastoreando em rostos e restos” pág. 29
Scarlata reconhece deste modo, em fina ironia, um estado de ataraxia, uma suspensão do pensamento, apresentando em leitura inversa que mesmo tendo conhecimento do relógio – instrumento de medida – seguramente seria impensável uma reação em justa medida contra o seu oponente: o tempo. O contínuo estado de vigilância advertido pelo autor não detém força e nem sentido prático de resistência.
O tempo poético retratado por Scarlarta tem como cenário: a cidade e o seus códigos verbais e visuais, em sua tela não há um espraiar desajustado da linguagem, o seu pincel e tinta navegam no mar imaginário da palavra e cumpre um engenhoso percurso náutico. Em quatros estrofes apresento trechos iniciais do poema “Rio de Janeiro”.
a placa trago
pessoa amada
em poucas horas
ao lado vendo
fogão seis bocas
perfeito estado
acima passo
ponto da loja
tratar com dono
no poste um número
e uma foto
faço de tudo
Há nos poemas dele cadência rítmica, alguns aparentam uma litania, cantiga, pois os versos retomam a ideia principal no final dos refrães.
O texto Não-Poema, página 13, de feição metalinguística diz assim:
“a você da leitura só peço/ que não perca a postura e me acuse/ de furto de tempo ou não ter alertado/ se tiver qualquer tipo de dúvida/é só reler o cabeçalho”
Scarlata alerta o seu leitor sobre a possível perda de tempo, ao lê-lo no “Não-poema”, quando na verdade percebe neste chamamento em tom humorado, uma ocorrência oculta, e sua outra face revela-se, e quem a conhece não conseguirá parar antes que percorra todo o livro.
O “Quintaneiras”, titulo remissivo, em homenagem ao poeta rio-grandense Mário Quintana, poesia que no seu bojo tem muita força, e que certamente ocuparia com esplendor as primeiras páginas do livro, falo isto, pois fui apanhado pelo belo ritmo e por outros componentes intrínsecos que integram a sua feitura. Os dois trechos abaixo abordam a questão da imprevisibilidade e dialoga com o ente abstrato citado em parágrafos anteriores.
“uma breve pergunta pra Deus/ já que ele criou nossas vidas/ meu Senhor, quando nós acordamos/ temos mais ou menos um dia? Pág.18
“não adianta dizer ao velho/ que a morte chega pra todos,/ pois o jovem, aos olhos dele/ sempre parece eterno” Pág.18
Encerro com a transcrição de um poema “Turista”, página 42, que evoca o medo disseminado nos corações e mentes dos habitantes das metrópoles, e o receio do morador local ao avistar o comportamento desavisado de um turista. Belíssimo poema arrancado do cerne de um grande poeta.
o olhar turista
é um olhar
faminto
de cômica
violência
lambendo tudo
que o guia
aponta
rindo
pelos
olhos
levam na mala
outra cidade
que não a nossa
Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com
Telefone: (21) 96962-2336
Jean Narciso Bispo Moura é poeta, autor de 6 (seis) livros de poemas, o mais recente “Retratos imateriais”, 2017, é também licenciado em ciências humanas, editor responsável pela Literatura e Fechadura – Revista Digital. Estreou em livro no início dos anos 2000, com o título A lupa e a sensibilidade, também é autor de 75 ossos para um esqueleto poético (2005); Excursão incógnita (2008); Memórias secas de um aqualouco e outros poemas (2011) e Psicologia do efêmero (2013).
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