As origens d’As mulheres de Tijucopapo
A pergunta pela origem
Este ensaio pretende ver a busca das origens familiares no romance As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto. Como diz José Maria Cançado, na orelha do livro: “…ela fazia aquela que talvez seja a mais desassossegante das perguntas da nossa cultura (algo no fundo tão tremendo como em outras culturas, a pergunta pelo nome de Deus): a pergunta pela origem.” E de fato é um romance de busca da formação da identidade de uma personagem que leva a pensar na origem das mulheres e em suas vidas. Já o título contém as duas palavras-chave do livro: mulheres e Tijucopapo (“lama escura”). Marilene Felinto, escritora brasileira pernambucana, ganhou o Prêmio Jabuti com esse romance, em 1982, pela Editora Paz e Terra.
Romance: forma aberta
O romance é uma forma elástica, através da qual pode-se contar uma história, descrever uma situação ou fazer uma mistura dos diversos modos de escrever. O romance é uma forma literária que comporta muitas variáveis. Surgindo com o mercado impresso e com a ascensão da burguesia (Ian Watts) e sendo constitutivo do modo de vida capitalista, ainda hoje essa forma chamada romance é tão multifacetada que não se podem distinguir ou separar de uma novela ou até de um conto, carregando consigo o lírico, o épico e o dramático. Então não se pode dizer que haja uma única forma romance, mas várias formas do romance, onde aparecem cartas, diários, impressões, ideias, fragmentos, argumentos etc.
De fato, o romance se adapta às diversas culturas e locais. Enquadra uma certa visão de mundo, busca o insólito, o psicológico, as mutações do mundo, mas permanece com o mesmo nome: é essencialmente uma forma aberta no sentido que, transformando a visão de mundo, ele também se transforma, acompanhando “os novos tempos”. Como vivemos um tempo em que a mudança é uma constante, também o romance vira uma “metamorfose ambulante”, forma em constante mutação. O que seria o romance senão essa forma constitutiva da mudança? Conforme o mundo se estilhaça ou se dissolve, o escritor ou a escritora busca nos pedaços do cotidiano reconstituir a vida dinamicamente. Talvez seja até uma maneira de reconstituir a “comunidade orgânica” idealizada para dar sentido a um certo tipo de vida: a fragmentação da vida nos grandes centros necessita de uma resposta que possa reconstituir uma nova comunidade orgânica.
O romance não deixa de se colocar como uma resposta ao “caos” da vida, sendo ou querendo ser uma tentativa de dar ordem a esse caos. É também o tema da vida alienada que está em vários romances – a vida que não tem chances de participar de uma comunidade ou não tem como se integrar em certos contextos culturais. Neste mundo onde não há lugar para o diferente, onde só vale o igual, o romance aparece como uma forma de registrar o desigual e de protestar contra a “equalização” do social.
O romance de Marilene Felinto, em certa medida, se adequa a essa forma de romance como obra aberta à memória familiar da autora/narradora.
Os anos de aprendizado da mulher de Tijucopapo
Esse livro conta a história do aprendizado de uma personagem em suas passagens por lugares que tiveram lugar na vida da escritora: as dores e as alegrias na formação de uma narradora-mulher; suas contradições, suas lutas em relação à mãe e ao pai, sua busca de uma identidade, talvez a identidade de uma mulher de barro escuro (Tijucopapo).
Ele pode ser classificado como um romance de formação ou de caracterização de uma personagem: mostra que uma formação não é algo “plano” sem tensão. Aqui aparece o romance familiar bem nítido: evidente que não é só isso, mas está claro que o núcleo da tensão está localizado no âmbito familiar. Talvez possa ser classificado de formação familiar pois a personagem está sempre se remetendo à “gênese” de sua família. No capítulo 3, é mostrado o ano de nascimento da mãe (1935) e a avó indo de jegue para “dar” a filha (mãe da narradora). (É claro que o que está sendo colocado não tem a ver diretamente com a vida da escritora Marilene Filinto, mas a partir da entrevista dela veremos que várias vias podem ser esclarecidas no romance. Afinal, não dá para desligar o texto de seu produtor como querem alguns.)
Quanto ao motivo da personagem escrever seu texto: várias vezes ela fala de ódio ao pai. Depois de citar o ano de nascimento da mãe, cita o ano de 1964, (o ano da “Revolução”), quando a personagem e família já moravam em Recife e sua mãe estava grávida e como a menina não sabia o que era, achava que aquilo era um mal para a mãe. “Depois papai chegava e eu preparava a cara de assassina para matá-lo”. (p. 20)
Mas depois justificava o pai, pois descobre que sua mãe era filha de uma avó puta. “Só mais tarde eu descobriria que minha avó tinha sido mesmo puta, e que em meu pai tinha ficado, portanto, esse ódio que o fazia um homem não pai, não marido.” (p. 20-21) . Tira a culpa do pai, e a coloca nos antepassados. A busca da origem de uma culpa: a culpa do desamor, de um viver miserável. Essa culpa também não seria um dos motivos da escritora? Não se escreve para tentar resolver um certo passado imaginado e vivido no imaginário? Não se escreve para tentar resolver o romance da formação familiar?
Procurando interligar as coisas: a escritora mudou para São Paulo com 12 anos. Isso, teria sido o motor que a tinha levado a escrever o romance. No caso da narradora, o “trauma” está lá, na relação familiar. É a partir do círculo familiar, de Tijucopapo e de Recife que ela vai desdobrando a narrativa em círculos concêntricos até chegar à grande cidade, São Paulo, e aos problemas da pessoa adulta, do amor e das relações humanas no plano da razão e da emoção, dos códigos sociais coercitivos da vida adulta. Há isso sim, um movimento de ir e vir entre o espaço da infância e da grande cidade. A dificuldade de adaptação no grande centro desarticulador das memórias e do modo de vida da personagem (as brincadeiras que não pode mais realizar) leva Rísia a se retirar, a “retornar” ao espaço afetivo da nfãncia e ao lugar de origem dela e da mãe. Fala de suas origens negras e índias, que a colocam na dimensão do “diferente”, do anormal. A rebeldia de Rísia está nos planos psicológico e social: é uma inadequação ao mundo – a personagem se acha diferente e faz tudo para parecer diferente. É uma mistura do órfão e do rebelde: contesta sua origem e se rebela contra ela. A narradora se autodenomina doida: “Eu era doida. Eu sou doida”.
Há uma frase que se repete ao longo do texto: “Estou indo de volta para Tijucopapo”. Uma volta metafórica mas é nas recordações que Rísia vai encontrar seu estado de origem: “(…) sei que sou uma pessoa atacada por lembranças atormentadas.” (p. 35) Ela está morre ou não morre por saber das coisas que sabe “sobre a vida e as pessoas, mas eu amo as pessoas”.
Rísia não se conforma com as situações que presenciou, que doeram, que lhe mostraram que a vida é cheia de enganos: a vida não é reta, é cheia de curvas. Percebeu que a tia traía sua mãe com o pai: isso é outro fator de consciência para uma vida cheia de surpresas. Rísia protesta contra tudo o que desmontou sua visão infindável da vida, contra os fatos marcantes de sua vida: a mãe que fora dada pela avó, o pai e a tia que traíam a mãe, a perda do amor de um homem, a perda de um irmão que nasceu morto.
A narradora, porém, sabe que é ela que “escolhe”, que seleciona os assuntos que escreve e como escreve: sua memória seletiva trabalha na direção do que é significativo na sua vida. Falando da amizade, ela diz: “É que sou eu quem escolhe. Quem escolhe sou eu. Tenho a palavra e sou eu quem escolhe.”
“Ter a palavra” é indicador de quem sabe que está contando uma história e vai construí-la e “gerar” uma interpretação subjetiva. Através de atos lingüísticos essa narrativa vai ser montada, elaborada ou tecida uma certa visão da vida e do passado. Eis aí o tema da linguagem como tema fundador. O poeta e o escritor sabe muito bem que a linguagem gera ações e funda mundos, e quando a narradora diz que ela tem a palavra, ela já se coloca como elaboradora de situações. Designar o passado, nesse caso, é escolher certos fatos marcantes, em geral aqueles que ficaram nas retinas da memória: a memória tem um modus operandi seletivo. O imaginário desse romance vai se formando a partir de fragmentos: não há o critério da ordem (início, meio e fim) mas um critério de andamento emocional, isto é, o ritmo é marcado pela emoção. Pelos cacos da emoção a personagem coloca em cena todo um mundo emotivo: em cada estilhaço a narradora encontra uma entrada para o seu mundo imaginário. Nota-se que a personagem está em andamento para Tijucopapo: “Estou indo de volta para Tijucopapo porque quero ver se sei.” (p. 29)
Ela está em busca da sua origem. E se parece com o paciente citado por Freud (em “Recordar, Repetir e Elaborar”), que “quando fala sobre estas coisas esquecidas, raramente deixa de acrescentar: ‘Em verdade, sempre o soube; apenas nunca pensei nisso'”, se referindo às impressões, cenas ou experiências.
Rísia não anuncia as “lembranças encobridoras” mas as “lembranças atormentadoras”, com isso, ela expõe seus “temores” e decreta guerra contra eles. O título As Mulheres de Tijucopapo foi tirado de uma gravura que tinham visto em um livro de escola em Recife: havia “um desenho de umas mulheres a cavalo, como se fossem amazonas”, e o livro tratava da história das mulheres que defenderam o arraial de Tijucopapo contra a invasão dos holandeses. O elemento da guerra e da luta está presente em quase toda a obra: com os pais, com as pessoas em São Paulo, com a tia, com a avó, com amigos etc.
Há, no livro, uma declaração de guerra contra a amnésia infantil: não deixa de ser uma forma de tentar superar certos problemas que continuam latejando na vida adulta. O que importa é que a protagonista faz um retorno metafórico à infância para buscar uma certa ordenação no seu passado.
A alusão à psicanálise serve para subsidiar o entendimento de uma narrativa, e, no caso, de uma narrativa ligada à origem de um drama, mas também origem de uma imagem. A personagem se questiona porque ela faz uma imagem de si e dos outros. Num certo momento, ela muda a imagem do pai depois que fica sabendo que a mãe era filha da avó puta: ela entendeu porque o pai agia de certa forma.
Esse romance se parece, assim, em relação à imagem, ao descascar de uma cebola: cada casca que sai muda a imagem até chegar ao âmago que é também mais uma imagem. Além de chorar, cada imagem que aparece elucida a existência da personagem que se faz e refaz o tempo todo. A luta é, para a personagem, uma forma de instigar, de atacar o passado para entender porque nasce tal história. É provocando as outras personagens que ela vai entendendo onde estão as suas raízes. Ela repete resistências para rompê-las.
A volta à Tijucopapo é cheia de obstáculos: mas o principal deles é o da memória da infância tentando se fazer e desfazer. Só quando a protagonista repete várias vezes certos problemas é que ela consegue narrar o retorno à Tijucopapo e os outros obstáculos: é quase um parto. “Quando acordei eu já estava em Tijucopapo. Eu viajava nove meses.”
Não há dúvida que a narradora, ao contar e idealizar sobre sua infância e sua volta a terra natal, quer referendar e dar novo sentido à sua vida: ela tenta tecer ou ligar os fios de sua vida.
Portanto, este é um romance aberto à recuperação do passado. Uma forma aberta ao que foi e ao que teria sido.
Referência bibliográfica
As mulheres de Tijucopapo
Rio de Janeiro
Paz e Terra
1982
Valmir de Souza é professor, ensaísta e pesquisador. Possui graduação e licenciatura em Letras (Inglês e Português) pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira (1985). Fez Mestrado e Doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (1999; 2006). Atualmente é professor adjunto da Universidade de Guarulhos, professor doutor da FIG/UNIMESP de Guarulhos. Tem experiência no ensino superior na área de Letras, Cultura e História da Educação. Autor do livro “Cultura e literatura: diálogos” e de vários artigos e ensaios sobre os temas de política cultural, literatura, cultura e educação. Coordenador e organizador de diversas publicações nas áreas de Cultura, Educação. Assessor e professor no Programa de Formação de Jovens Monitores/as Culturais (Instituto Pólis e Secretaria Municipal de Cultura de SP, 2015-2017). Atuou como pesquisador no Programa de Pós-Doutorado de Gestão Pública da EACH/USP, com o Projeto “A política de Cidadania Cultural: entre a democratização da cultura e a democracia cultural (2013-2014).
muito interessante seus conteúdos gostei muito deles. Parabéns 🙂
muito interessante seus conteúdos gostei muito deles. Parabéns 🙂
Valmir, muito bela a análise sobre a forma Romance. Não conhecia” As mulheres de Tijucopapo,” de Marilene Felinto. Agora já está na minha lista de espera de leitura. Parabéns, ótimo ensaio!