Três poemas de Nathan Souza

 

Nathan Sousa 300x169 - Três poemas de Nathan Souza

 

 

 

O IMPULSO DA AVE

para M. Paulo Nunes

tenho sobre a mesa estes papéis alheios a qualquer
anseio; a qualquer angústia ou desforra.
papéis brancos, amarelos. celulose e silêncio.
despropósitos.

rabisco em suas faces estas formas
que defloram signos rasos, ausência;
gritos a sumirem na paisagem.
(o que a palavra transfigura ou desfalece).

onde todos os lugares são apenas
tinta e tracejado: o desvelo que do pulso
exige golpes de enlace; a língua a deslizar
nos cantos; o invento das mãos que nada sabem
do lume antes do gesto.

esta mesa; estes papéis alheios ao assombro,
e o ímpeto do improvável que me resta.

 

 

 

O ENTARDECER DE WISLAWA

o vento soprou da boca do éden,
e antigo é o testamento de sua horda.
então, translúcido foi o barro
(esta alegoria de frutos nascidos sobre o sangue derramado).

da queima das narinas ao todo judaico, das sepulturas
dos vikings às cinzas sobre o mediterrâneo,
são eternos os campos de mina no entorno da alma.

há vultos no calor das rezas.
esquivos em templos, mesquitas, igrejas.
atento ao que é música
e/ou oculto rito (em uníssono ou entoada como uma antífona),
o pobre homem juntou as mãos.

desceu ao chão
(os olhos acesos para o céu ou para meca),
levantou-se e sentiu os ossos moverem-se em adorações
antes da caça ou da guerra.

aqui se fabricam pedidos
(sim, drummond: portentos, fim do inimigo);
e o escambo começa com frutas, primícias das colheitas,
um filhote de animal; ou mesmo gente da melhor espécie.
pegue! aceite este cigarro! é de coração.

 

 

 

OUTRO GESTO EM VÃO

olhando hoje, aquele foi o princípio
de uma nova era, embora algum prenúncio
já lhe apontasse sem preâmbulos as
primeiras falhas na memória.

calado, confirmava com um gesto
de cabeça as promessas feitas na noite
anterior.

assustava-se com o tamanha de sua ousadia e,
não menos, com a magnitude
de seu desespero diante
de tantas promessas juvenis.

cada nova alegria vinha com a urgência
das coisas derradeiras, e nem mesmo seus
janeiros acumulados deram-lhe o poder
de domesticar as esperas.

então, nenhuma mágoa se apossou
de seu espírito ao recordar de sua fama
de homem de pouca fala, dado que
nada demais poderia dizer para
o esquecimento.

 

 

Nathan Sousa (Teresina, 1973) é romancista, contista, poeta, letrista e acadêmico. Autor dos livros O percurso das horas (2012), No limiar do absurdo (2013), Sobre a transcendência do silêncio (2014), Um esboço de nudez (2014), Mosteiros (2015), Nenhum aceno será esquecido (2015), Dois olhos sobre a louça branca (2016) e Semântica das Aves (2017). Vencedor do Prêmio José de Alencar 2015 (UBE), o Prêmio Vicente de Carvalho 2017 (UBE) e o Prêmio Humberto de Campos 2017 (UBE). Foi finalista do Prêmio Jabuti 2015 e do Prêmio OFF Flip 2016. Tem poemas traduzidos para o inglês, espanhol, francês, italiano e alemão. É membro da Academia de Letras do Médio Parnaíba, da Academia Piauiense de Poesia, e membro correspondente da Academia Galega da Língua Portuguesa.

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