Três poemas de Antonio Carlos Secchin

Antoniocsecchin 300x271 - Três poemas de Antonio Carlos Secchin

 

 

 

Autorretrato

A Flávia Amparo

Um poeta nunca sabe
onde sua voz termina,
se é dele de fato a voz
que no seu nome se assina.
Nem sabe se a vida alheia
é seu pasto de rapina,
ou se o outro é que lhe invade,
numa voragem assassina.
Nenhum poeta conhece
esse motor que maquina
a explosão da coisa escrita
contra a crosta da rotina.
Entender inteiro o poeta
é bem malsinada sina:
quando o supomos em cena,
já vai sumindo na esquina,
entrando na contramão
do que o bom senso lhe ensina.
Por sob a zona da sombra,
navega em meio à neblina,
mesmo que ele nem veja
a poesia que o ilumina.

 

 

Receita de poema

Um poema que desaparecesse
à medida que fosse nascendo,
e que dele nada então restasse
senão o silêncio de estar não sendo.

Que nele apenas ecoasse
o som do vazio mais pleno.
E depois que tudo matasse
morresse do próprio veneno.

 

 

Língua negra, Rio 30 graus

 

Bem longe explode em preto
a pele cósmica de uma estrela,
aqui arde em silêncio
a pele grossa de uma vela.
Negra é a língua que se enreda
para um salto sem saber o que a espera.
Negra, negra língua,
com seu gosto de esgoto e de quimera.
Língua que se desfaz, liquefeita,
na cachaça trôpega dos bares da favela.
Língua que ao pó retorna, heroína
celebrada na veia aberta das vielas.
Passos que galopam para o abismo,
expulsando a pontapés a primavera.
Um fio de luz desmancha o frio.
Anoitece no Rio de Janeiro.

 

 

ANTONIO CARLOS SECCHIN é poeta com oito livros publicados, entre eles Desdizer (inédito, mais a poesia reunida, 2017), Cantar amigo (2017) e Todos os ventos, ganhador de três prêmios para melhor livro do gênero publicado no Brasil em 2002. Também é ensaísta, autor, entre outros, de João Cabral: a poesia do menos (1985), Papéis de poesia (2014), João Cabral: uma fala só lâmina (2014) e Percursos da poesia brasileira (2018, Autêntica). Foi eleito em 2004 para a Academia Brasileira de Letras. Em 2013, a editora da UFRJ publicou Secchin: uma vida em letras, volume com 88 artigos, ensaios e depoimentos sobre a sua atuação nos campos da poesia, do ensaísmo, do magistério e da bibliofilia.

 

Please follow and like us:
This Article Has 1 Comment
  1. Joaci Góes Reply

    Antonio Carlos Secchin é um dos mais refinados intelectuais brasileiros! No exercício do binômio poesia e crítica literária ninguém o supera!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial