Resenha | O tempo e a estranheza de não se deixar entender | por Luciano Melo

  1. Caço o poema como um gato caça um cão

“Caça”, Psicologia do efêmero

 

Para reconhecer o terreno poético desta Psicologia do efêmero (All Print Editora, 2013), novo livro do poeta e filósofo Jean Narciso, é preciso partir da constatação de que estamos tratando de um autor atrevido ao extremo. Nos seus três primeiros trabalhos, A Lupa e a Sensibilidade (2002),75 ossos para um esqueleto poético (2005) e Excursão incógnita (2008), ele parece ter chegado ao cabo de uma tríade que discute determinada arquitetura entre a existência humana e a poiesis, que se em sua origem grega significou ofício artesanal, carpintaria, depois se desdobrou para a arte da poesia.

Nesta “trilogia”, o poeta inicia o percurso com uma obra metapoética, que olha para si mesma com ferramentas que o artesão estético dispõe: o olhar imaginativo através de uma lupa. Disso nasce o leitmotiv de Jean Narciso: com sensibilidade microscópica, o arquiteto vai solidificando – se é que existam – os limites da palavra e atribuindo-os inusitados caminhos que quase sempre surpreenderão a cada novo olhar. O segundo fruto é composto, nada mais, nada menos, de 75 poemas ou ossos de um esqueleto poético. Depois da discussão estética da poiesis, o poeta parte para a carne, a matéria constituinte em cada um de nós, o receptáculo concreto que abriga o amor, o vício e o medo. O corpo dialoga consigo e com o mundo numa conversa às vezes áspera, outras vezes irônica. Jean Narciso vai montando este “boneco” de todos nós, tal como o elefante drummondiano, ao longo dos 75 ossos que nos erguem, construção tão intimamente associada ao ofício do carpinteiro da oficina poética. E em Excursão incógnita, o arremate da tríade mencionada, trava-se um diálogo com a divindade que escreve o percurso fadado a cada indivíduo. Há um embate neste livro que proporciona tal exercício: o enigma celestial e/ou o enigma divinatório. Aproxima-se deste modo a uma leitura da esfinge sofocliana e sua advinha no decurso da jornada de Édipo. Mas se na tragédia grega o rebate está no próprio homem, o atrevimento de Jean Narciso espreita a marcha ignota do poeta ao manipular a palavra, o verbo, portanto, a criação. Convido o leitor a examinar “Maria Madalena”, o poema que encerra esta Excursão incógnita. Repare na “gestação” da palavra, que violenta o poeta e santifica o pecado. Para facilitação da análise, transcrevo o poema a seguir:

Maria Madalena

A palavra comeu Homero

Comeu os padres e as freiras

O poema instaurou um estupro coletivo

E as muitas gozadas adoeceram o útero do poeta

Poemas não têm somente sete faces

Têm uma multidão de anônimos comidos

Pela santidade fálica da palavra.

A palavra come sem pudor a genitália do poeta

E goza em seu útero poema mais velho

Do que Gomorra.

            Nos livros seguintes, Memórias secas de um aqualouco e outros poemas (2011) e este Psicologia do efêmero (2013), Jean Narciso parece estranhar a delicadeza do tempo, menos pela incapacidade de traduzi-la, mas na constatação de não querer decifrar-se. No primeiro, as reminiscências de um solitário janota saltitante no trampolim à beira de uma bacia aproximam-se da crucificação de Cristo (Memórias… é composto por 33 poemas numerados) como do albatroz no convés de As Flores do Mal, de Charles Baudelaire. Óbvio que temos aqui uma interpretação um tanto agressiva, talvez demasiada patética, de avizinhar imagens tão dessemelhantes entre si. Contudo o atrevimento de Jean Narciso não é barato ou em vão. Sugiro o exercício de realizar a leitura encadeada destes dois últimos trabalhos na sequência e não estaremos especulando sobre uma poesia composta “ao acaso”.

            Desta maneira, Psicologia do efêmero apresenta-se como a sublimação do tempo em recortes. Ainda que considere a produção de Jean Narciso até aqui entre uma “trilogia” da carpintaria poética, carne e divino e estes dois últimos abraçando o tempo como pano de fundo, temas caros à estética artística, sem dúvida, não há de se duvidar que temos em mãos um raro exemplar do exercício literário contemporâneo. O diálogo estabelecido por Jean Narciso com o “cânone”, ou seja lá como o leitor tenha por predileção entender como “cânone” (Homero, Baudelaire e Drummond, para ficarmos nos já citados anteriormente) não parece induzido “a fórceps”, mas de tal sutileza que muitas vezes escapa ao reconhecimento. Por exemplo, “Pavor e pseudoarremedo” (Poeta federal / que não atende cartas / não afere e-mail / dos que não têm a marca d´agua / dos chanceleres / e dos fidalgos da palavra), flerta com a “Poética” de Manuel Bandeira, ou “Pescoço da girafa” numa deliciosa conversa com Miguel de Cervantes (retilíneo / dom Quixote  / e sua lança / cavalgam apáticos  / o cavalo atabalhoado / sem tirar as bicolores listras / sobe / no pescoço da girafa). Sem ser pusilânime, o texto de J. Narciso soa com o frescor do olhar para o cânone e determina até onde este aroma alcança o seu verso.

Conheci uma das faces desta Psicologia do efêmero e pus-me a prefaciá-la. Por isso, a partir de agora passo a palavra a Jean Narciso. Existem outras faces do poeta a conhecermos. Com o atrevimento que lhe é peculiar.

Profº Ms. Luciano Melo

 

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