Romance Entremeios reativa a paleta cromática como cerne tanto de uma “ode criativa” como um mote da memória mexendo na vida.

 

Há uma certa parcialidade em se tratar de si na terceira pessoa. É como se quisesse afastar da gente o discurso onde o self é o ponto nevrálgico. O rei Pelé fala de si na terceira pessoa. Não sei se há alguma preponderância do mito, um descolamento entre o que se diz de si e o que os outros vão assimilar? A análise é um processo que quase falamos de nós numa terceira pessoa, como quase um personagem de ficção, mas ali, sentados, não somos para nós e para ela ou ele um personagem de ficção?

Lidar com a cor ou com o cromatismo das emoções parece ser o cerne do livro Entremeios da escritora Cássia Penteado, pela Editora Reformatório. Neste romance muito bem escrito do ponto de vista estético e poético,  a memória terá sua nuance em filamentos de cor forte, rubra, escarlate. Talvez, a imagem, mais nítida da narradora seja sua mãe deitada com um certa tintura sobre seu corpo, imobilizada como um objeto expositor.  “E quando a toquei, vi que tinha um lago vermelho de sangue morno tingindo o vestido e o cabelos dela”  Degrade, tonalidades, escala, degradações cotidianas, corrupções.

Cássia reflete sob o domínio da arte, principalmente na pintura, os abismos do corpo gerenciados por quedas piscossociais, pelo silêncio não aberto em linguagem no momento certo, como depois do corpo adultizado, estes estados duais serão produzidos entre o real e a fantasia ou o escapismo, aqui o quadro ou a tinta também refletem entre o fora e o conteúdo do eu em perda de energia tanto por uma questão combalida de doença,  quanto pelo aspecto latente da agressividade que fractalmente produz tintas, aqui não só resvalando para seu aspectos de cor, emoção, voluptuosidade, mas também ações friccionais.

Partindo de um constante deslocamento físico entre urbes, onde o acesso ao cosmopolitismo é facilitado pela gerência da arte plástica, a narradora irá matizar toda sua vida entre exposições, curadores de arte, com lugares mais “calmos”. Aqui esta noção de lugar ( ou fora do lugar?) pode parecer um zona intermediária entre o espaço artístico responsável pela sua líbido criacional, mas também um certa reserva amoral dos atos à serem praticados em sítios, em cabanas, atos manchados de carmim, da ferrugem mais adocicada que o sangue.

 A personagem que deixa a fala em 1ª pessoa, talvez passe para um outro lado da ponte, onde o crime, a impessoalidade da morte. Lembremos da sua mãe matizada pelo rubra fonte-face,  faça deste fosse (passado) ou esta foice que decapita os capítulos em série ( vidas-ficções) entre obra e criação, entre vida mimética e fúria anímica dos jogos da memória.   

cotação: ótimo

 

 

 

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FERNANDO ANDRADE, jornalista, poeta e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemometria, e Enclave (poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018 o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie,  Editora Penalux.

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