Fernando Andrade – Seus poemas falam do brincar poético, das intimidades das palavras com quem elas mantém contato, (somos nós)? Mas é também uma noção de intimidade com as pessoas, e grupos, mas claro mediada pela linguagem. Fale um pouco disso?
João Pedro Fagerlande – Todo poema é uma espécie de brinquedo, de jogo. Mas isso não quer dizer que todos os poemas sejam necessariamente divertidos – porque há também jogos sérios, densos, como por exemplo o xadrez. O poema participa desta esfera lúdica, em que os sentidos não estão prontos, rígidos, mas sempre em movimento, como uma espécie de malabaris da linguagem. O poeta deve manejar suas palavras para que elas permaneçam em movimento mesmo depois que ele se retira, isto é, quando termina o poema. A dinâmica da linguagem é o que, a meu ver, garante a qualidade literária de um texto, mantendo seu frescor, sua vitalidade.
Quanto à intimidade, isso varia de acordo com a proposta de cada poema. O gênero lírico é certamente o mais íntimo de todos, em oposição ao gênero épico; o lírico pede uma voz mais baixa, mais próxima, e o épico uma voz mais alta, mais enérgica. O primeiro é uma espécie de sussurro ao pé do ouvido, e o segundo uma contação de histórias junto a uma fogueira.
Fernando Andrade – Tô pensando com meus botões, a liberdade do pássaro preso na gaiola e outros poemas onde você associa liberdade x controle, a ironia seria um suporte para o poeta ser tão livre a ponto de poder falar tudo sem claro a interdição do Não. Não pode, não deve, pois o poeta é um bicho insubordinado, mal criado?
João Pedro Fagerlande – Sem dúvida o poeta é um bicho insubordinado. Primeiro porque sua tarefa é absolutamente contrária ao que a ordem do trabalho preconiza; lembrando a expressão de Manoel de Barros, o poema é um “inutensílio”, não tem serventia prática imediata – assim como o amor, a amizade, e outros vínculos humanos. Segundo porque o poema é um gesto revolucionário que busca incendiar a linguagem, tornando-a mais viva, e também mais perigosa. O que é a metáfora senão um explosivo contra a linguagem literal?
A ironia é mais uma dessas munições contra a ordem convencional das coisas. É um olhar tortuoso que nos permite ver além das imagens planas, percebendo suas reentrâncias, falhas e contradições. É uma perspectiva sombria que às vezes ganha contornos humorísticos, outras vezes se aproxima do cinismo. Mas é uma sombra que serve para iluminar novos sentidos que não viriam à tona sem a sua presença.
No caso do poema que você citou, a ironia funciona como um contra-discurso que corrói a fala da máscara poética. Trata-se de um pássaro que defende sua prisão numa gaiola, que acredita que as gaivotas o invejam, pois todas as manhãs recebe maçãs da Califórnia pela grade. Mas, ao mesmo tempo, o que é um pássaro senão a capacidade de voar? A ironia faz ressaltar esta contradição, e torna, a meu ver, o texto mais interessante do que se fosse simplesmente uma defesa aberta da liberdade. Em vez de simplesmente cantar a liberdade, optei por mostrar o absurdo que é defender o auto encarceramento. Sem a ironia, isso não seria possível.
Fernando Andrade – O eu lírico, ele é um ser em terceira pessoa, distanciado? Como é poetizar a família? Qual melhor foco ou distância? Para mergulhar na afetividade dela?
João Pedro Fagerlande – Esta discussão sobre o eu lírico, ou eu poético (como prefiro chamar), é muito antiga. Certamente ele não corresponde exatamente ao eu biográfico do autor, pois há sempre uma “edição” do eu; o poema não é uma sessão de psicanálise em que o poeta simplesmente expõe sua intimidade, mas sim um objeto artístico que fabrica uma imagem de “eu”. Este “eu” pode também ser uma máscara, como um cachorro que assume a voz do poema. Assim, podemos pensar numa gradação, que vai de uma voz mais confessional (mas nunca inteiramente biográfica) a uma mais teatralizada. Cada poema irá ocupar o seu lugar nessa escala.
Publiquei no meu último livro um poema composto de seis fragmentos que constrói uma relação familiar entre mãe e filha, “Carolina sobre o banco”. Num dos fragmentos a mãe assume a voz do poema e considera a possibilidade de sua filha nunca ter existido. Algumas pessoas vieram falar comigo um pouco desconcertadas, pois eu tenho uma filha pequena, e elas achavam que isso poderia soar mal para um pai. Mas isto é literatura, é uma personagem fictícia; como autor eu mergulho em dilemas humanos que às vezes não são meus, mas que posso penetrar pela minha imaginação dramática. Isto me faz lembrar aquelas senhoras que querem bater com guarda-chuva nos atores que interpretam vilões nas novelas de TV, como se os artistas fossem de fato os personagens.
Fernando Andrade – Há sempre uma lacuna que me lembra uma cena, um pouco de um filme, de um desenho animado, como se você tivesse contando duas histórias, uma visível outra submersa. Quase com um sorriso no canto da boca… Fale um pouco sobre isso?
João Pedro Fagerlande – No livro “Azul tupinambá” há alguns poemas em que uso uma sobreposição de vozes paralelas. São sempre duas vozes que se alternam, em regime de oposição. No poema “Carolina sobre o banco”, por exemplo, há fragmentos em que a mãe se divide em duas vozes, uma que expressa o seu amor pela filha, outra que expressa seu ódio (como quando a filha entra de sapatos sujos em casa). Este paralelismo vocal de uma mesma personagem serve para evidenciar duas faces radicalmente opostas (mas ainda assim verossímeis), mostrando que não somos tão coerentes como gostaríamos.
Outro poema que usa esse procedimento é o que começa com “entre o amor e o ódio / a espuma da cerveja”, em que um pai possivelmente alcoólatra ensina seu filho a beber cerveja no dia de seu aniversário. Contraponho a esse fio narrativo imagens bizarras como um palhaço disparando seu riso na testa da criança. A sobreposição de vozes serve então para gerar um efeito mais perturbador no poema, mais delirante, em acordo com sua proposta estética.
Fernando Andrade– Diga um pouco do seu ativismo na poesia? Você é um agitador cultural, Como é esta atividade de produzir e divulgar poesia pelo Rio?
João Pedro Fagerlande – Comecei minha carreira invadindo bares e restaurante do Rio com o grupo Assalto Poético. Era um lance muito louco, anárquico, e que me causou dois problemas significativos: uma fenda nas cordas vocais e quase a minha morte. Um policial que tomava chope num bar sacou uma arma – por sorte não atirou, mas nos deu baita sermão. Coisas que fazemos aos dezenove anos.
Depois criei uma produtora cultural com minha esposa, Eliza Morenno, a Poesia Viral Produções. Ganhamos muitos editais, realizamos projetos como o “Circuito Carioca de Saraus” (nas Arenas Cariocas) e o programa de incentivo à leitura “Grandes Poetas Brasileiros” (em escolas e bibliotecas municipais). Infelizmente não existem mais editais como os que permitiram esses projetos a saírem do papel; as políticas culturais estão sendo desmontadas pelos novos governos, que não aprenderam a reconhecer a importância da arte para uma comunidade. O atual momento é de reinvenção das práticas e dos financiamentos para que os artistas profissionais possam continuar seu trabalho. Mas o que tenho visto é muitos terem que mudar de profissão para poder pagar as contas de casa, ainda mais numa cidade cara como o Rio de Janeiro.
Uma das poucas instituições que ainda valoriza o trabalho dos artistas profissionais é o SESC. Faço muitos trabalhos para ele, então vou recitar poemas em diversos lugares, como escolas, bibliotecas, praças, empresas, até shoppings e supermercados. Amo recitar poesia nesses lugares, compartilhando os poemas que mais gosto (de diversos autores) com pessoas que não conheço. Já rodei por todas as regiões do país fazendo isso. Como não são tantos os leitores de poesia, a performance é um veículo muito potente para que esses textos cheguem às pessoas.
FERNANDO ANDRADE, jornalista, poeta e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemometria, e Enclave (poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018 o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie, Editora Penalux.
Muito bom ler a entrevista ouvindo sua voz João Pedro, claro peguei o livro e curti os detalhes de “Carolina sobre o banco” e aprendi um pouco mais com você. Página 81 “entre o amo e a morte” outra sutil delicadeza de sua linguagem poética! Mais um pouco sua fã de coração…Sucesso sempre!
Interessante perceber o quanto sua fala, escrita e gestos estão intimamente conectados. João Pedro Fagerlande se apropria das artes como ninguém. Em suas aulas experimentamos com detalhes do lúdico que a poesia nos possibilita. É sensorial e divertido.