Fernando Andrade A sua poesia teria uma relação entre o alfinete e a agulha, entre a dor do coração, ato poético na sublimação da dor com a linha que agulha alinhave o tecido poético. Fale um pouco desta relação entre o ponto e a pontada.
Luiza Cantanhêde – A relação entre o ponto e a pontada, em Alfinetes, se desenha como uma tessitura sensível entre o gesto poético e a dor transformada em linguagem. A agulha — símbolo de quem costura, remenda, liga — aparece no título e nos próprios nomes dos poemas (“Pontada 1”, “Alinhavos”, “Suturação”) como metáfora visceral do fazer poético.
A pontada é a dor, o rasgo, o instante em que algo nos atravessa com violência ou lucidez. O ponto é o resultado desse atravessamento — o instante em que a linguagem dá forma ao que sangra. A linha poética que surge dessa dor é o fio com que eu procuro “costurar ”fragmentos da existência: memória, corpo, tempo, feminino, silêncio…
A dor atravessa o tecido da linguagem, mas deixa uma marca que não é apenas ferida — é também costura, testemunho e resistência.
Fernando Andrade – Sua criação parece criar espaços para linguagem surgir mais camadas de texto ( pele) As pontadas seriam então aflorar os sentidos que vêm das camadas mais internas de sua poesia. Comente.
Luiza Cantanhêde – Sim. A linguagem aqui trabalha como um corpo vivo, onde cada camada textual — ou cada “pele” — revela profundidades que não se mostram de imediato. As pontadas não são apenas fragmentos poéticos; elas funcionam como emergências sensoriais, erupções que vêm das zonas mais internas do ser, como se a palavra nascesse do músculo, do osso, da memória visceral. São rasgos por onde irrompem verdades indizíveis.
Há um jogo deliberado entre superfície e profundidade. Em “Durmo em pleno sigilo / como quem se esquece do sonho / feito as violentadas às margens da vida” (Pontada 6), por exemplo, a imagem é curta, mas carrega um universo traumático e histórico inteiro sob a pele do verso. A pontada revela, mas também provoca — ela afeta.
A linguagem não se apresenta como pele lisa, mas como tecido sensível, rasgado e remendado, onde cada camada tem sua textura: o corpo, o tempo, a ancestralidade, a ausência.
Fernando Andrade – A concisão deixa em seu poema certas lacunas que o trabalho do leitor também como criador preenche os espaços em branco da imaginação de quem lê. Comente.
Luiza Cantanhêde – Eu confio na inteligência sensível do leitor. A concisão não é economia, é intensidade; às vezes é naquilo que falta que se encontra o que mais pulsa.
A concisão atua como uma espécie de silêncio carregado — uma ausência que convoca. O poema, ao recusar a explicação excessiva, abre lacunas onde o leitor não apenas interpreta, mas co-cria. Ele é chamado a entrar no texto com sua própria pele, memória e vivência, preenchendo os vazios com o que sente, intui ou não consegue nomear.
Versos como “Amar é como habitar / as costas do sol” (Pontada 9) ou “sou fogo e cinzas / fragmento de ar que toca / e desaparece” (Escavo Memórias na Pele do Esquecimento) são imagens abertas, sugestivas, que não se encerram em si — elas ecoam, reverberam. O não dito é tão poderoso quanto o dito.
A ausência de explicações é proposital: ela provoca o leitor a sair da passividade e assumir a autoria da leitura. Assim, cada leitura se torna singular — porque cada leitor preenche os vazios com seus próprios alfinetes de memória, dor ou desejo.
Fernando Andrade – Pintar ausência ou costurar faltas, o poeta se revela nestas duas pulsões. Seu livro tem um pouco disso. Comente.
Luiza Cantanhêde – Essas duas pulsões — pintar e costurar — são simbólicas do ofício poético que me propus a exercer: a poeta como bordadeira de silêncios e pintora de ausências, como quem habita o limiar entre o que foi e o que falta, entre o que fere e o que recomeça.
A poeta que emerge em Alfinetes não é apenas alguém que nomeia o mundo, mas alguém que o remenda, que o reconstrói a partir do que se perdeu, do que foi rompido, do que não pôde ser vivido plenamente.
Pintar ausência é dar forma ao invisível: tornar presença aquilo que já se foi ou que nunca chegou a ser.
Já costurar faltas é o gesto de cuidado, de resistência diante daquilo que dilacera. Em “teço o caminho / para remendar / cicatrizes” (Pontada 10) ou em “tentando costurar com dedos trêmulos / o que já foi desfeito” (Sulcos do Tempo), a poesia aparece como um gesto de sutura — não de apagar a dor, mas de transfigurá-la. Como quem costura não para esconder a ferida, mas para mantê-la viva com dignidade, memória e beleza.
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