Fernando – A estrada neste período retratado por você entre final de 2018 e início de 2019 enfatiza o Governo Bolsonaro, e seu narrador pega a estrada com uma desesperança agoniada. Em filmes sobre o tema, a liberdade e o desconhecido parecem guiar o condutor. Aqui tudo parece previsto e roteirizado. Fale sobre isso.
Alvaro – Aquilo que você chama de “desesperança agoniada” tem relação com a minha idade. Nasci em 1961. Comecei a me interessar por política na adolescência, que coincidiu com o período de crise da Ditadura Militar. Participei de todos os grandes movimentos da redemocratização, as Diretas Já, a luta pela Constituição e as eleições presidenciais de 1989. Para mim, e, creio, para muitos de minha geração, é decepcionante vivenciar, já no outono da vida, o renascimento de uma extrema-direita tosca e saudosa dos militares, além disso alimentada por discursos moralistas e religiosos. A memória que nós – falo das pessoas da minha idade – carregamos parece ter se dissipado para grandes setores da população, inclusive os pobres. Idealizar o passado autoritário não se resume a isso: essa idealização apaga as péssimas condições em que a maioria dos brasileiros viviam naqueles tempos. Às vezes, a história brasileira parece exatamente isso: um roteiro previsto. Avançamos, tocamos um teto e recuamos. Em 1964 foi assim. A partir de 2016, tem sido assim.
Fernando – Sua narrativa beira a via documental, mas você prefere ficcionalizar sua história, criando o cenário quase pós-apocalíptico, neste mandato horroroso do Capitão. Fale sobre esta vertente semidocumental.
Alvaro – É provável que essa escolha semidocumental se origine da minha formação em História. Me graduei pela UFRJ e durante toda a minha vida adulta fui professor de História, em redes públicas e privadas, das turmas do ensino básico até a pós-graduação. A trama de meus textos sempre procura conectar dramas privados ao contexto maior. Contexto, que convenhamos, tem sido bastante distópico nos últimos anos. Éden, romance que publiquei em 2022 pela 7Letras, se passa na periferia do Rio de Janeiro devastada por um conflito nuclear provocado em um hipotético segundo governo de Bolsonaro. Eu tenho preferência por histórias que se desenrolam em cenários abertos à vida social. Recentemente li Velar por Ela, de Jean-Baptiste Andrea, e percebi a força que o livro tira do drama histórico da Itália, a ascensão do fascismo, a vida das pessoas afetadas por acontecimentos de que elas fazem parte, mas, no fundo, não controlam.
Fernando – São Paulo teve um governo bolsonarista, é um lugar onde o narrador viaja. Minas acho que teve um governo alinhado com o PL. Porque as escolhas dos estados na narrativa, incluindo Curitiba.
Alvaro – Eu sempre vivi no Sudeste. Nasci na Baixada Fluminense, morei em Belo Horizonte, no Rio de Janeiro e, agora, em Niterói, vou com relativa frequência a São Paulo, tanto a capital quanto algumas cidades do interior. É o território que domino. As paisagens do Antiroad são por mim conhecidas a ponto de poder descrevê-las pelo recurso da memória visual. Conheço muito o sul de Minas. Para a escrita do livro, só precisei fazer algumas pesquisas de áreas que eram conhecidas pela primeira vez, basicamente o centro-oeste paulista e o norte paranaense. As estradas do Antiroad são aquelas que unem minha residência, em uma cidade fluminense, ao destino, o cárcere onde Lula estava preso, em Curitiba. A ida e o retorno se deram por caminhos diferentes, à exceção do trecho em território do estado do Rio de Janeiro, ou, quando da volta, a ele retorna.
Fernando – O final do seu livro narra a prisão do Lula em Curitiba, é onde seu personagem vai fechar o roteiro de viagem. A liberdade depois da soltura parece dignificar o espírito on the road dos beatniks. Comente.
Alvaro – A prisão de Lula foi uma farsa, resultado de uma conspiração envolvendo setores conservadores do país e, com muita probabilidade, interesses vindos de potências estrangeiras. Ela não foi a prisão apenas de um personagem que, apesar dos seus limites e de suas contradições, tem uma representação política imensa. Ela aprisionou a opinião de uma parcela muito grande da sociedade brasileira, que não pôde expressar sua opinião pelo voto. Devemos nos lembrar que Lula era favorito às eleições de 2018, e foi impedido de disputar por causa de um processo viciado desde seu início, baseado, nas palavras de um de seus juízes, “não em provas, mas em convicções.” O ápice do enredo é a chegada ao prédio onde Lula estava, em Curitiba, aquela mistura de êxtase por estar ali com tantas pessoas e as dúvidas sobre o futuro. A ida foi cheia de nuances. O retorno, praticamente uma única estrada, sob temporal em grande parte do tempo.
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