Jozias Benedicto | escritor
Quando eu era bem jovem – e isso lá vai muito tempo, bem antes de entrar no mundo dos adultos de uma profissão, cartão de ponto, metas e avaliações de desempenho – eu vivia mergulhado em um universo de livros, filmes e discos. Os discos eram os vinis, os LPs e os compactos, e uma viagem em um ônibus circular até a Copacabana da Modern Sound e o universo de descobertas sonoras, a troca de ideias com os vendedores e os outros frequentadores, a difícil escolha de um que coubesse na minha mesada de estudante, a volta para casa no ônibus cheio, abraçado à preciosa carga, em casa o retirar cuidadosamente do embrulho, do envelope de plástico e, atento, mergulhar nas ondas de som que me levavam a outros mundos, outros eus.
Os filmes eram a sessão da meia-noite do Cinema Paissandu, os Godard, os Buñuel e os Fellini, ir cedo para pegar um bom lugar e ver os futuros famosos na fila, a sessão em que o documentário sobre a Maria Betânia foi vaiado e um jovem Caetano Veloso se levantou – eu estava bem próximo e nem tinha notado que era ele – e afrontou a vaia com uma voz firme e sotaque baiano: “Betânia é um gênio”. Já os livros eram o tomar conhecimento pela primeira vez dos clássicos, os livros de capa dura vendidos em banca de jornais (eu sabia render minha mesada) e ver que, se um Meddle do Pink Floyd era ouvido e ouvido e ouvido em audições de 20 minutos e um Alphaville era visto em noventa e nove minutos (e depois um lanche no Bob’s do Largo do Machado), os Irmãos Karamazov dificilmente eram lidos nas duas semanas que traziam às bancas o novo clássico em capa vermelha e daí a quinze dias o outro e o outro…
Quando eu era bem jovem eu pensava neste paradoxo do tempo de fruição de livros, filmes e discos, e eu pensava que um artista, um escritor, poderia talvez escrever um livro que fosse um híbrido, um livro para ser ouvido como se ouve um disco, com direito a muitos replays, e ao mesmo tempo um disco que fosse para ser lido, com pausas, com vagar, com mergulhos, como quem lê um livro.
Penso nisso tudo a propósito do livro do escritor Fernando Souza Andrade, Se a vida fosse um vinil (Editora Penalux, 2022), que releio no intervalo entre uma viagem e outra e me leva a fazer esta viagem de retorno à minha adolescência e seus paradoxos.
Se a minha vida à época tivesse sido um vinil, ou se minha vida hoje pudesse ser não o som que entra invasivo através dos aplicativos de streaming e sim um vinil – daqueles que você namora semanas até conseguir juntar o dinheiro da mesada para tê-lo e ouvi-lo com toda a atenção do mundo. Ou um livro de poemas, como o livro do Fernando, que você lê com leveza e viaja no Lado A, no Lado B e em seguida nas Bônus Tracks – como um vinil, o livro se divide em dois lados e com isso nos leva a, terminado o Lado B, não resistir a voltar ao Lado A. Ou, como fazíamos com um vinil que depois de muito ouvido se torna um amigo íntimo, ir direto a uma faixa, depois outra, depois outra, e recriar em nossa audição um fluxo que dominamos e com isso subverter e recriar o trabalho do músico. Fazer a mesma coisa com o livro do Fernando, embaralhar os poemas e lê-los em outra ordem e outra, como um herdeiro do Cortázar de O Jogo da amarelinha, ele também um escritor que amava gatos – e talvez não por acaso um dos personagens principais deste Se a vida fosse um vinil é Bek, um gato Beckettiano, “adorador de distâncias e alturas”. Um dia, um gato, lembro outro filme que vi na sessão da meia-noite do Paissandu há décadas e que outro dia revi no computador, um lago calmo entre TikToks, séries e blockbusters.
Como ser um gato Beckettiano? O escritor nos dá, pela boca e os bigodes de Bek, a receita: “é preciso um pouco de solidão; de lamber as próprias feridas até que elas fechem”. “Psicologia de gatos” que abrem consultórios, ironiza Fernando em uma das Bônus Tracks. Talvez, mas é um conselho que se aplica não só aos felinos interessados em se tornarem Beckettianos, pode se aplicar a todos nós, que lambemos nossas feridas e cultivamos nossas memórias e para isso nada como ler um livro ou ouvir um vinil, melhor ainda as duas coisas ao mesmo tempo e agora.
Jozias Benedicto
Abril 2023
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