Fernando Andrade entrevista o poeta Marcio Aquiles

Marcio Aquiles - Fernando Andrade entrevista o poeta Marcio Aquiles

 
 
 
 

 

FERNANDO ANDRADE: Seu romance parece estar montado sobre um forte caráter de análise combinatória, onde o texto é parte criativo, parte relacional e interpretativo perante o objeto da leitura. Usar a leitura com referencial de escrita foi complicado para a feitura do livro?

MARCIO AQUILES: A metalinguagem e a intertextualidade, em vez de dispositivos esporádicos, compõem a própria estrutura do romance. A proposta é sugerir certa aleatoriedade nas citações e referências, mas tudo está conectado, desde a premissa homérica central, de sair de casa, empreender a jornada de aventuras e voltar ao lar, até as obras que vão brotando pelos capítulos, seja pelo discurso direto da narradora, professora de literatura, transposição de suas aulas ou ainda fluxos de consciência.

O processo de escrita desse romance foi bem peculiar. No início de 2021, começamos um grupo de estudos na Unicamp, formado por alguns atuais e alguns ex-orientandos do professor Alcir Pécora. Nos reunimos virtualmente para discutir os mais diversos tipos de materiais: artigos acadêmicos próprios, textos de teóricos importantes, obras literárias etc. Quando o grupo começou, eu tinha acabado de concluir o primeiro capítulo do romance, e propus que em algum dos próximos encontros nós discutíssemos o trabalho.

O feedback dado pelo Alcir e também por meus colegas foi usado, sobretudo, como inspiração para muitas linhas temáticas que despontaram nos capítulos posteriores. Sobre a forma que eu havia pensado para o livro, contudo, apesar de algumas observações críticas importantíssimas, e, evidentemente, embasadas no mais alto nível teórico, eu não abri mão, mesmo sabendo que era uma estrutura arriscada.

Enfim, posso dizer que tudo deu muito certo, o livro foi premiado, está sendo bem recebido por quem o leu… Mas é importante salientar isso, que algumas daquelas conjecturas conceituais que debati com o grupo foram muito bem digeridas e transformadas em ficção.

FERNANDO ANDRADE: Há uma ideia na minha leitura de que a ação do romance não se avança até seu destino castelo durante o percurso, porque ela é dilatada por uma grande quantidade de informações estéticas e referenciais que cruzam a história o tempo todo. Até que ponto estas informações equilibram ou ajudam na estrutura do romance a chegar a algum fim?

MARCIO AQUILES: Todos os percalços, hipérboles e interrupções narrativas, mais do que eventos randômicos, constituem a matéria essencial da coisa toda, uma vez que o caos cognitivo que toma conta da realidade ficcional vai sendo refletido também na composição do texto. Às vezes surge uma superabundância de conceitos e referências, alguns obscuros, inclusive, mas creio que fica nítido que não é necessário um conhecimento prévio do que significam todos eles. Talvez seja esse um dos meus desafios, compor um texto que possa ser apreciado tanto por quem conhece os modelos canônicos, os procedimentos linguísticos utilizados e as teorias filosóficas abordadas quanto por quem focar nesses múltiplos enredos que constituem a odisseia da narradora.

FERNANDO ANDRADE: A lógica parece ser uma construção importante na sua arquitetura ficcional. Ao mesmo tempo, temos uma questão com o não sentido de um texto entrópico que parece que perde calor devido ao alto teor de intertextos. Que conversas você manteve com autores e como se dão elas no percurso do seu livro?

MARCIO AQUILES: Há centenas de referências que perpassam ao mesmo tempo tanto o cânone literário mais erudito quanto a cultura pop. Algumas aparecem como chiste, outras como fio condutor imprescindível para aquilo que está sendo exposto. Em certo sentido, os temas centrais da obra são a literatura e a linguagem.

A entropia, por sua vez, em sua definição mais precisa no campo da física, prevê que o grau de imprevisibilidade de um sistema aumenta com o tempo. Essa visão que aprendemos no ensino médio, de que a desordem aumenta com o tempo, é, digamos assim, um pouco imprecisa. O que aumenta de fato é a imprevisibilidade.

E talvez o romance funcione um pouco assim em seu ordenamento, pois tudo começa bastante caótico, e há um crescente de paradoxos e situações que não possuem um ponto fixo de referência dentro de uma única lógica, o que vai deixando a narrativa mais anárquica. Porém, quando as situações mais mundanas surgem no sexto capítulo – fatos também muito estranhos, mas que estariam mais reconhecíveis dentro de nosso cotidiano –, também vejo como uma reviravolta que pode caracterizar esse aumento da imprevisibilidade, dado que isso quebra totalmente com o andamento anterior.

FERNANDO ANDRADE: Um texto como seu seria considerado paranoico no sentido que objeto ou significado não é fixo, ele é mutante devido a velocidade das linhas de citações e referências serem tão ágeis e rápidas que pode ser improvável qualquer efeito de conclusão sobre o romance. Fale disso.

MARCIO AQUILES: Exatamente, tem sim um forte aspecto paranoico na narrativa, derivado do enredo por qualquer das vias de interpretação que se tome: esquizofrenia da narradora, ou delírio narcótico, ou paradoxo ficcional, ou caos causado pela expansão do artefato cognitivo que invade o texto… Isso resulta nesses múltiplos efeitos de conclusão, dado o caráter aberto do enredo, que é proposital, uma vez que minha proposta era construir uma polissemia que, fazendo um paralelo ao universo matemático, procurava tender ao infinito.

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This Article Has 1 Comment
  1. Livia Reply

    Obrigada por essa entrevista, estou lendo o livro e será muito útil na minha caminhada.

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