FERNANDO ANDRADE: Há uma interessante relação especular dos seus contos como textos de ficção científica. Mas eles passam mais pelo aspecto humano e até filosófico das relações humanas quando vistas por algum tipo de distorção de conduta ou comportamentos sociais. Eu diria que você entra no aspecto da língua (suas normas) do gênero, não focando tanto nos cenários tão específicos. Fale um pouco disso.
NATHALIE LOURENÇO: Nos meus textos, muitas vezes as tecnologias são apenas nomeadas e usadas como parte estabelecida da vida. São coisas próximas e pequenas, não há futuros longínquos ou naves espaciais. Como funcionam ou foram estabelecidas é algo menor, porque o drama é de ordem humana. Se formos pensar na nossa vida, que já é muito mais avançada comparando com algumas décadas atrás, eu não passo um segundo do meu dia tentando entender como meu computador funciona: apenas faço uso dele. Outro aspecto dos meus contos é que são histórias pessoais, sobre relações humanas. Eu vejo que muito do que consumimos em ficção científica se utiliza das invenções para estabelecer visões de sociedades radicalmente diferentes. Temos livros maravilhosos como 1984, O Conto da Aia, Admirável Mundo Novo, todos eles discutem formas distópicas de sociedade, como elas se organizam. Na minha obra, a lente se aproxima mais do indivíduo, no singular. Para dar um exemplo tirado de um dos contos do livro, Reserva, onde uma cirurgia permite a trocas de corpos, esse conto poderia abordar todo um mercado de corpos, e como ele afetaria as classes sociais. Isso aparece sim no conto na medida em que um jogador com muito dinheiro resolve comprar o corpo do jovem iniciante, mas ele também é sobre o sonho versus o fracasso desse iniciante, sobre a desistência do que se quer em um mundo que tem prazos e impaciência para com os sonhadores.
FERNANDO ANDRADE: A tecnologia é muito bem usada por você como ponte para estabelecer o (inverossímil)? dentro de um contexto que discute o futuro da capacidade humana de adaptação ao meio. Como se deu este desenho em contos onde ela funciona quase como uma semiótica da relações pessoais e sociais.
NATHALIE LOURENÇO: Acho que a tecnologia é importante pela forma como impacta a vida humana. Quantos comportamentos que temos hoje em dia não são moldados pelas tecnologias que temos acesso? Os apps de relacionamento, por exemplo, mudaram a dinâmica do sexo, do apego. Essas são as questões que me interessam e busco explorar, discutir como agimos e somos afetados pela tecnologia, que uso faremos delas. Afinal, toda tecnologia é neutra, somos nós que escolhemos o que fazer delas. Um avião pode transportar pessoas ou fazer um bombardeio. De certa forma, meu foco é nas pessoas comuns, com dramas muito pessoais, que são a forma que sempre escrevi meus textos. Tudo diz respeito ao que a tecnologia quer dizer na vida daquela pessoa específica e usar ferramentas que ainda não existem ou não estão difundidas é uma forma de extrapolar a realidade para discutir problemas e questões de hoje de uma forma mais pronunciada.
FERNANDO ANDRADE: Há uma crítica à padrões estéticos e culturais nos contos. Quando colocamos elementos que elevam certa distopia, qual o poder de sublimação desta crítica na sua argumentação?
NATHALIE LOURENÇO: Utilizar a fantasia ou a ficção científica, nos dá um elemento estranho, uma estranheza, que atrai a imaginação. Acredito que dessa forma, é possível e mais palatável trazer o olhar para assuntos espinhosos do que se formos tratá-los de forma direta e realista. A invenção também traz um aspecto alegórico. Quando colocamos algo que não existe, isso pode estar no lugar de uma série de outras coisas, abre espaço para novas interpretações. Um exemplo é o Conto Como Ser Menor, que se passa em futuro onde pessoas obesas estão sendo dizimadas. Ele contém a crítica ao padrão estético, e também aborda uma violência que, se na história é fantasiosa, na vida ela acontece diariamente com outras minorias, basta pensar nos números de mortes entre pessoas trans e travestis aqui no Brasil. Quando meu avô, um senhor judeu de 96 anos, leu esse conto, ele fez uma correlação com o Holocausto, com minorias que se vêem obrigadas a se adaptar em nome da sobrevivência. A ficção científica é poderosa porque ela se veste de múltiplos significados.
FERNANDO ANDRADE: Uma coisa que notei talvez seja uma experiência, particular minha, que o tom do seu texto tende ao jornalístico, ao relato, mas, ele possui camadas por onde outras versões se camuflam fazendo dos contos uma certa tendência híbrida para lidar com as fronteiras dos gêneros. Fale disso.
NATHALIE LOURENÇO: Eu gosto de pensar na forma dos contos e de como ela pode se conectar à história que está sendo contada. Não diria que a intenção fosse misturar gêneros, mas sim achar o vasilhame que daria a melhor forma a este ou aquele conteúdo, independente do conto ser realista, fantástico ou de ficção científica. A forma também conta a história.
Assim, no conto Reserva, sobre transplante cerebral, temos um carrossel de narradores – como o leitor também estivesse fazendo uma troca, indo de corpo em corpo. No conto Exercício para, há pequenos exercícios de humanidade pontuando os textos que são inspirados nas instruções da Yoko Ono no livro Grapefruit, que servem como respiros no meio do texto. Já o conto Como Ser Menor tem o formato de um diário, mas que se passa sempre às quartas-feiras, o dia que ela visita a irmã e que possibilita os saltos temporais que a história exige.
Acho que é uma das coisas que mais me agrada em um livro de contos, poder brincar com toda uma palheta de estilos e recursos variados em um mesmo livro.
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