FERNANDO: Seus personagens funcionam com uma tríade sobre a mentalidade e pensamento do mundo-universo do século XX, na sua figuração importante que foi a semana da arte moderna. Quais espectros passam por eles para você falar sobre estética, arte, e política?
LUIZ EDUARDO: Sim, os personagens são esquemáticos, estereotipados para a formação de uma esquete mínima em que se pode representar a estratificação social em suas dimensões econômicas, políticas e ideológicas por meio da arte que a expressa.
Na verdade, eu diria que formam um quarteto, no qual a personagem Conceição se insere como a porta-voz da cultura não erudita, ao contrário, plenamente popular, aquela que sequer era considerada como personagem representativa de algum lugar de fala: a preta pobre, trabalhadora doméstica, provavelmente filha de escravizados libertos, que não domina a norma culta da língua, que é usada como objeto sexual e explorada nas relações sociais e trabalhistas desiguais que persistem até hoje.
Na outra ponta do espectro, está o Dr. Otto Salgado, personagem emblemático da elite cafeeira, descendente da aristocracia, na vertente que desaguou nos movimentos de extrema-direita do período, como o Integralismo, por exemplo. Ligado também a movimentos reacionários da Igreja, como a Opus Dei, ele figura como o baluarte do conservadorismo em sua expressão mais perniciosa. Defende a manutenção do status quo e da ordenação social dividida em castas de acordo com o poder econômico condensado nas mãos de seus pares. Combate ferozmente as vanguardas, pois nelas vê o perigo da degeneração das crenças artísticas e estéticas e, por isso, também políticas e sociais, em que se baseiam suas próprias prédicas.
Entre os dois extremos, num degrau mais próximo do Dr. Otto, está Diego Mercúrio, uma espécie de mensageiro, um interlocutor entre a casta dominante e a classe menos abastarda. Ele representa a figura do político, do fisiocrata, daquele que põe a mão na massa para articular as leis, os mandos e os jogos deles decorrentes, a favor dos dominantes que o financiam, numa relação de mutualismo difícil de interromper.
Por fim, o classe média, excluído da classe dominante, mas também distante do estrato mais baixo, geralmente diferenciado pelo acesso não às posses, mas à instrução que, em certa medida, garante uma mínima ascensão social. Faustino, de certa forma, também é um exilado, por sua vez, da elite do pensamento artístico de vanguarda, representado pelo grupo dos Andrades, seus desafetos pessoais. Por isso, alia-se ao chamado do Dr. Otto, feito por intermédio de Mercúrio, para compor uma obra que se oponha, em conteúdo e estética, à Semana de Arte Moderna proposta por aquele grupo. O dilema desse personagem é o mais forte, pois precisa trair suas convicções ideológicas para encontrar o tão desejado lugar de fala, termo que, apesar de muito em voga na atualidade, representa uma condição de inclusão-exclusão do debate artístico, estético, social e político desde que o homem dominou a linguagem!
FERNANDO: Queria que você falasse sobre a noção de liberdade dentro de uma esfera de criação? Faustino Sucupira parece que mantem a dubiedade do discurso artístico, onde falar é fazer entrelinhas…
LUIZ EDUARDO: Exatamente, eis que assim se expressa o conflito interno desse personagem, o que lhe dá, dentro do senso dramático, um certo componente trágico. Precisa exorbitar a medida de suas próprias crenças e de suas limitações a fim de alcançar um termo de reconhecimento que lhe é negado pelos demais artistas que o exortaram do meio por intermédio de críticas a seu trabalho que, diferente da prerrogativa das vanguardas, enveredava-se ainda e exclusivamente pelos cânones da arte clássica. Depositei, em sua voz, um crescente senso crítico em relação às proposta tanto de um grupo, quanto do outro, munindo-lhe de um distanciamento que só se opera pela peça ter sido composta cem anos após àqueles eventos e, portanto, com o conhecimento histórico de seus resultados. Assim, com um intencional discurso ensaístico escamoteado em suas falas, foi possível tecer – nesse hibridismo entre ensaio e dramaturgia – um diálogo de caráter socrático que inquere ambos extremos antagonistas de sua posição que, por exclusão, torna-se neutra, conferindo-lhe o caráter de isenção (típica do pensamento científico, portanto afeita ao discurso ensaístico). É desse modo que, em suas entrelinhas opera-se a dubiedade que permite escamotear suas verdadeiras motivações, intenções e ações, bem como expressar seu pensamento crítico até mesmo quanto àquilo com que ele parece aliar-se.
FERNANDO: A balança me lembrou o personagem Diego Mercúrio. Ele transita entre dois universos até que com certa maestria. Como foi este personagem dentro da ambiguidade de uma relação dialética de opostos ente antítese e síntese?
LUIZ EDUARDO: O Diego Mercúrio, como disse, opera a síntese, ao passo que serve de intermediário entre os mundos em litígio. Talvez seja o mais maligno, pois que dissimulado. Com uma postura tipicamente demagoga, flerta com as aspirações de Faustino ao passo que opera a grande obra ditada por Otto, diluindo as tensões entre ambos e oferecendo vias de distensão que, na verdade, não são dialéticas, mas pura retórica ilusória aplicada aos seus próprios interesses de manter-se sob as graças do tutor dominante. Eu o vejo como um Ministro da Cultura de um Estado Totalitário que finge proximidade com as manifestações mais populares e democráticas a fim de, falseando introduzi-las no repertório do discurso financiado e endossado pelo poder oficial, mantê-las higienicamente extirpadas de intentos subversivos. Assim, ele é um sensor escamoteado e manipulador que criva o repertório exibido a público sempre, é claro, alinhado aos anseios do financiador.
FERNANDO: A religião é um dos temas que você aborda com certo viés bem político. E ela está muito perto da questão da sexualidade dos corpos. Fale um pouco disso.
LUIZ EDUARDO: Sim, embora o tema, sem mergulhos reflexivos profundos. esteja apenas insinuado em algumas falas, principalmente alavancadas pela presença sensual da Conceição e pelo ascetismo do Dr. Otto, o tema da sexualidade, principalmente sob a luz da coibição religiosa, perpassa toda a trama, afinal, se Nietzsche é a mola propulsora do senso crítico em Evoé, 22!, Freud, o outro grande relativizador do conhecimento naquele período, não poderia ficar de fora. E todos sabemos como o sexo presta-se aos jogos do poder e como ele é capaz de expressar, para além dos condicionantes conscientes, as verdadeiras orientações comportamentais, de cunho natural ou cultural. Os personagens não discutem diretamente a libido, o sexismo, a androgenia, os assédios, mas suas ações e insinuações trazem o tema à ribalta talvez com a mesma força dos demais assuntos abordados diretamente nas falas.
A partir da entrevista , penso que duas obras são de cunho bastante cultas.
E para o leitor necessario que se aprogundeum pouco mais em vários temas que abrangem o conteúdo.