A interpretação da palavra e seus variados significados são a força motriz de Medula (Penalux, 2019), novo livro de Érico Hammarström, que faz sua migração da poesia, para a prosa, sem perder a essência poética, marca que caracteriza seu trabalho.
A excelência e o apreço pela palavra escrita são lapidados em frases, assim como um escultor trabalha com a pedra ou o bronze.
O autor pelas palavras, traz em destaque, nove contos que compõem a obra e transformam a leitura de Medula em um deleite para os finos apreciadores de escritores como Jorge Luis Borges e Chico Buarque.
A comparação de Hammarström com Borges e Buarque não é em vão, pois o cuidado com o qual o autor trabalha seus contos, se torna evidente logo na primeira leitura com o conto, Cotidiano, no qual Hammarström relata de forma lírica e afetuosa a relação de uma mulher, uma mãe que segundo o autor, é aspirante a escritora que precisa lidar com sua rotina entre os filhos e a criação literária. Lídia almeja escrever um livro memorialístico e o conto explora esse processo de escolha do que relatar ao mesmo tempo em que, vemos a postulante à escritora, lidar com seu dia a dia de mãe e estrangeira em Portugal.
O conto remete, embora talvez essa não fosse a intensão do autor, a Terra Estrangeira, de Walter Salles, no qual, testemunhamos a relação de brasileiros vivendo em Portugal e o quão alienígenas esses seres se sentem em uma terra onde somente a língua é compartilhada. Cotidiano não possui as tintas trágicas de Terra Estrangeira, nem o clima soturno do mesmo, mas Lídia parece sentir o que sente Alex, personagem de Fernanda Torres, uma certa sensação de deslocamento, de não pertencer ao lugar onde habita.
Outra situação que remete ao filme de Walter Salles é o recorte temporal de Cotidiano. Enquanto Terra Estrangeira se passa no desgoverno Collor, o conto parece discorrer temporalmente falando, logo depois do mesmo. Hammarström, através de Lídia, mostra sua preocupação/desilusão com um Brasil que não deu certo após a redemocratização, e que traça um paralelo com o Brasil de hoje, em que a cultura do ódio e da intolerância é característica do desgoverno eleito em 2018.
Monotonia, segundo conto do livro, narrado em forma de diário, discorre sobre um homem sufocado pelo cotidiano. As pressões do dia a dia o massacram de forma implacável e o mesmo não parece ter consciência de sua condição. Rico em significados e representações e narrado com palavras de fino trato, o leitor é sugado para o universo distorcido do personagem que envolto em confusões mentais, tem em seu último relato no diário, a certeza que o caminho que está trilhando o põe em perigo, tanto para si, quanto para aqueles a sua volta.
O desconforto proposital de Monotonia, é trabalhado com esmero, e propositalmente, suga as forças do leitor, que através da narrativa, assume a identidade do personagem e “sente” a insanidade como algo palpável, e nada distante da realidade de todos nós.
Bifurcações, assim como Cotidiano e Monotonia, lida com a ruptura mental, a insanidade e as aspirações literárias, narrando a história de um rapaz do campo, que em razão das tragédias da vida, é levado a morar com os tios na capital. O sucesso inicial da vivência na cidade se mostra desastroso na vida adulta, quando um “surto” o leva a internação em uma instituição psiquiátrica.
Poético, e ainda assim triste, Bifurcações se mostra, em suas páginas finais, esperançoso. A liberdade, ainda que tortuosa, é demasiado cara, sendo mostrada como a conquista final de um personagem, que fora de seu ambiente de infância, nunca pareceu se encaixar em lugar algum. É também um relato nostálgico, de uma época que não existe mais, e que em uma leitura mais pessimista, possivelmente nunca existiu.
Medula, em sua jornada, aborda a criação literária na maioria de seus contos, e tem como objetivo, segundo Érico Hammarström “Espalhar a palavra, divulgar o verbo, fazer com que as pessoas tenham mais contato com a literatura, essa é a minha intenção com o lançamento de hoje”. Objetivo ao meu ver, alcançado com louvor.
Marcelo Frota é professor e tradutor. Nascido no Rio Grande do Sul em 1979, é apaixonado por cinema, literatura e música e tem apreço especial pelo jazz e pelo blues, sem deixar de lado o rock clássico e a chanson francesa. Considera-se um cinéfilo devoto e apaixonado pelo cinema europeu, americano, latino-americano e brasileiro. No seu coração literário os espaços são ocupados por autores que vão de Shakespeare a Saramago, sem nunca abandonar os romances policiais baratos, a ficção científica e a poesia marginal.
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