A plana geografia dos acidentes
Bem aqui nesta esquina o desejo
e a dúvida da ventura. A geografia plana
dos acidentes na plena urgência das horas.
Aqui é onde eu sempre te espero
entre as paisagens de concreto e os sinais
intermitentes na rotina insana dos dias
e os escombros da cidade.
Aqui nesta precisa esquina
desse prolongado instante
alguma coisa em mim ainda resiste
além de todos os planos malogrados e os embustes
dos sentimentos repartidos.
A promessa concretizada nas palavras escritas
a ferro e fogo nas linhas contínuas das minhas mãos
e no vinco sorridente do teu rosto
serenando a renúncia.
O que subitamente não desperta
1.
A tarde inclina-se escura sob o uivo
do vento entremeando os prédios
como um lamento um sopro
de tristeza e abandono.
Há um desejo incerto no incesto
do dia que contagia a noite (um corpo só
e seus segredos).
O tempo se perdeu nos vestígios
da sua presença na inocência de um abril
às voltas do que nunca fomos.
(Ela partiu na manhã
quando as janelas se abrem enfim
em áspera resposta
aos desabitados sentimentos).
2.
A solidão é um gesto incurável
como a vida que se abisma
nos acontecimentos recorrentes.
Como decifrar os mistérios do mundo
que despertam em cada manhã
sob a chuva fria e repentina?
Penso enquanto me guardo
debaixo do guarda-chuva
aguardando o sinal que aprova a viagem
sem jamais indicar um caminho.
Não há mais tempo para contrições.
É seguir a trilha imposta pelo corpo
como mensagem e destino
(ainda que seja mais um engano
o plano de vida adiando o fim).
3.
As horas penduradas no relógio
essas ausências que praticamos dia a dia
até o dissipar das tardes
onde não esperamos morrer.
A sobra do medo em comum.
A mudez assombrada
aterrada na angústia onde moram
todas as palavras inúteis
amanhecidas em gestos programados
como coar o café pelo filtro do cigarro
e o escarrar compulsivo pela abertura
da janela.
Depois confirmar a sorte no espelho
refletindo a vida que perdura
ainda que envelhecida
aos olhos da noite.
Ouvir o escuro caindo
Translúcida a tarde se desfaz
enquanto os postes aquecem
o seu brilho de mercúrio.
Ainda é possível distinguir
um ou outro passo depois da pressa.
Um soluço. Um grito estridente de sirene.
O rangido basculante de portas frontais se fechando
ou se abrindo para a noite.
Ouvir o escuro caindo incólume
e sem nenhum presságio
sobre o imaginário das coisas inacontecidas.
(À distância dos seus olhos
ensaio meu próprio fim
como se as horas não durassem
o bastante para o contraponto.
É sempre difícil acreditar numa nova manhã).
Sidnei Olivio (in A Geografia mórbida das cidades)
Sidnei Olivio é natural de São José do Rio Preto, SP. Biólogo circunstancial e poeta por convicção. Tem nove livros publicados, além de participação em diversas coletâneas, revistas, sites de literatura e e-books.
Obra prima da literatura contemporânea.Sempre inspirador e sublime ler poemas deste quilate. Bjo, Solimar.